Affonso Prado – Ushuaialaska https://www.ushuaialaska.com.br Quem não se movimenta, não sabe onde está. Wed, 09 May 2012 22:03:17 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.2 Mais sobre os primeiros dias no Paraguai https://www.ushuaialaska.com.br/mais-sobre-os-primeiros-dias-no-paraguai/ https://www.ushuaialaska.com.br/mais-sobre-os-primeiros-dias-no-paraguai/#comments Wed, 09 May 2012 22:03:17 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=592 Me esqueci de contar, na postagem sobre os dias no Paraguai, que desde nossos primeiros dias por lá até os últimos eu costumava perguntar aos paraguaios que conhecíamos qual a impressão que tinham sobre os brasileiros, tanto historicamente quanto atualmente.

No início eu fazia essa pergunta carregando algum sentimento de culpa, tendo em mente principalmente o massacre do povo paraguaio pela Tríplice Aliança na Guerra do Paraguai. Pouco a pouco se juntavam a essa mesma pergunta a questão dos brasiguaios,  brasileiros donos de terras na fronteira entre o nordeste paraguaio e o centro-oeste brasileiro. Por fim, após me frustar mais de uma vez buscando ouvir música paraguaia ao sintonizar as rádios locais e só encontrando Michel Teló, Tchererê-tchê-tchê, funk carioca e sertanejo universitário, também me interessava saber dos paraguaios o que achavam da presença constante de músicas comercias, canais de televisão brasileiros e novelas da Globo, presentes em todo o país.

É claro que minha pergunta era um tanto tendenciosa (assim como esse texto) e forçava uma resposta imensamente genérica; mesmo assim, não ouvi de nenhum paraguaio qualquer reprovação aos brasileiros, e sim, quase sempre, admiração. Sem ignorar a vocação imperialista do Brasil, paraguaios, uruguaios e argentinos com quem já cruzei por aí admiram a “potência produtiva brasileira”, e de alguma maneira respeitam o atual papel de liderança local que o Brasil exerce na América Latina, e particularmente entre os países do Mercosul. É curioso como, no entanto, somos frequentemente confundidos com americanos, canadenses ou alemães: “Se fosse americano eu não ajudava!” – ouvi mais de uma vez.

Escutei de um argentino num camping uruguaio: “O Brasil é um fenômeno!”; de um paraguaio em Assunción que me falava das mulheres brasileiras, disse que sabem o que querem e o que não querem, e buscam o que querem com objetividade, mas sem deixar de brincar (“jugar”), em seguida malhou as mulheres argentinas; os caminhoneiros paraguaios e uruguaios também contam histórias das amizades que tiveram e têm com os caminhoneiros brasileiros.

Seria só no Uruguai onde eu ouviria pela primeira vez alguma ressalva aos brasileiros, pelo Alfredo, um uruguaio a quem fomos pedir informação na estrada no nosso primeiro dia de pedal pelo país. Aos nos recomendar conhecer Colônia del Sacramento, única cidade uruguaia de colonização portuguesa, o Alfredo disse que hoje o Brasil tem assumido o mesmo papel que os portugueses já cumpriram no passado, “mas pacificamente”.

Numa das muitas conversas com o Giulio, paraguaio que nos hospedou pelo couchsurfing em Assunción, fiquei PASSADO!! quando nos contou de um episódio recente da diplomacia brasileira que eu desconhecia: após o fim da Guerra do Paraguai, os “vencedores” (Brasil, Argentina e Uruguai) literalmente saquearam tudo que acharam por direito do território paraguaio; não seria exagero dizer que a memória material do povo paraguaio se encontra há 150 anos sequestrada. Em 2009 o Governo Lula reavaliou todos esses arquivos e objetos roubados, a fim de julgar se conviria abrir esses documentos publicamente ou devolvê-los ao Paraguai (a exemplo de Argentina e Uruguai, que devolveram o que guardavam recentemente).  Por fim, a diplomacia brasileira decidiu por seguir mantendo consigo esses documentos, a seu ver “comprometedores”. Um paraguaio que queira ter acesso a esses documentos, quase todos guardados no Palácio do Itamaraty em Brasília, não tem permissão; no entanto, um brasileiro tem acesso a eles, entre os quais documentos históricos relativos à independência do Paraguai em 1810, artefatos da cultura guarani anterior à chegada dos espanhóis, registros de canções paraguaias, e o que mais me impressionou: um enorme canhão conhecido como “Canhão Cristão” ou “El Cristiano”, feito pelos paraguaios a partir da fundição de vários sinos de suas igrejas para fazer frente ao poder de fogo da Tríplice Aliança e depois capturado como troféu de guerra pelo exército brasileiro. Esse canhão encontra-se hoje no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e é para os paraguaios um símbolo de sua resistência durante a guerra (fui buscar na internet mais informações sobre esse caso e parece que o Brasil devolverá pelo menos o canhão, o resto segue no Itamaraty indefinidamente).

 

El Cristiano

 

Me desculpem pelo tom generalizante e tendencioso do texto, não deu pra sair de outro jeito, e tudo é realmente mais sutil e com mil mais variáveis do que eu faço parecer no texto. Agora, o que os paraguaios, uruguaios e brasileiros tem me dito sobre os argentinos é DRAMA!!, e vai ficar pra outra postagem.

 

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Paraguai: a Ruta 2 de Ciudad del Leste a Asunción (de 26/2 a 03/3/2012) https://www.ushuaialaska.com.br/paraguai-a-ruta-2-de-ciudad-del-leste-a-asuncion-de-262-a-0332012/ https://www.ushuaialaska.com.br/paraguai-a-ruta-2-de-ciudad-del-leste-a-asuncion-de-262-a-0332012/#comments Sun, 15 Apr 2012 04:35:05 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=397 Me diziam ainda em Foz do Iguaçú: cuidado com a comida e a água no Paraguai, eles são sujos, não tem cuidado com a comida, cagam na rua; também cuidado com a polícia paraguaia, são extremamente corruptos, só há diálogo na base da propina; é território de ladrões e larápios, os carros não tem placa, as estradas não tem lei; há guardas armados nas portas de comércios, restaurantes, edifícios residenciais, um climão de bang-bang ; os paraguaios tem a boca cheia de dentes de ouro pra substituir dentes podres, o sistema de saúde do país é muito precário, se eu me acidentasse na estrada não haveria hospital por perto. E como muitos dos brasileiros com quem eu convivia, eu nutria a imagem de um país pobre ou paupérrimo, quase uma nação-mendiga, sem estrutura nem qualquer atrativo maior do que fazer compras em Ciudad del Leste (o que nos faz associar, quase que automaticamente, paraguaios com muambeiros, comerciantes de produtos falsos). Eu carregava também a imagem vaga de um país que ainda sofria as consequências da Guerra do Paraguai, ocorrida há quase 150 anos atrás.

A favor do Paraguai eu cultivava o interesse em ouvir de perto a música paraguaia, em particular os violeiros, que conheci um pouco através das composições do Agustín Barrios Mangoré, da influência dos violeiros paraguaios no estilo da Helena Meirelles (uma puta violeira mato-grossense*), e em um ou outro grupo instrumental ou de cantores paraguaios, de nome genérico, que tocavam músicas rancheiras, valsas ou polkas (apesar de saber que tanto no Paraguai como em quase todo país da América Latina de hoje só ouvirei variações de cúmbia). Também a favor, minha enorme ignorância acerca de um país aparentemente sem grandes atrativos naturais, turísticos, culturais, o que me atiçava a curiosidade para ver o que havia por lá. Muitos dos alertas infelizmente se confirmaram, mas com ressalvas; hoje, após duas semanas percorrendo o Paraguai e já quase chegando ao Uruguai, vemos como muitos dos preconceitos que tínhamos caíram por terra, e que muito além da pobreza, da precariedade e das muambas, o Paraguai foi mais um dos lugares onde a renovação dos “valores” que a viagem de bicicleta nos suscita fizeram-nos ver muitas riquezas, algumas inclusive ameaçadas.

Mapa do Paraguai

Explicaram-me que, em geral, um turista que queira visitar o Paraguai percorre um triângulo, que são as rotas entre Ciudad del Leste, Assunción e Encarnación (as 3 maiores cidades paraguaias). Olhando o mapa paraguaio, esse roteiro concentra-se na região sul do país, onde também está concentrada a maior parte de sua população e atividade econômica: toda a região norte, muito maior em extensão territorial, é ao Nordeste ocupada principalmente por fazendas de criação de gado (em grande parte nas mãos de estrangeiros que ali foram morar e trabalhar, como os brasiguaios, americanos, canadenses e outros); e ao Noroeste está o grande Chaco paraguaio, muito árido, quase improdutivo e pouco habitado. Nosso percurso não seria muito diferente ao do turista padrão (com o diferencial de não estarmos motorizados): entraríamos por Ciudad del Leste percorrendo a perigosa Ruta 2 até Assunción, e de lá desceríamos pela Ruta 1 até Encarnación, já na fronteira com a Argentina.

Saímos cedo de Foz do Iguaçú num domingo (sempre um dia propício para sair ou chegar em cidades grandes, há menos movimento nas estradas). A Ruta 2 tem aproximadamente 330 km de extensão num caminho praticamente plano, e pensando em manter nossa média de 100 km de deslocamento por dia, pararíamos duas noite até chegarmos no terceira dia na capital Assunción.

Logo que atravessamos a fronteira paraguaia ouvi meu nome na rua. Da janela de um carro apresentou-se a Sheung, amiga ceramista da minha mãe que mora em Foz e foi nossa primeira opção de hospedagem por lá antes de entrarmos em contato com a Cida Muriana. Não nos conhecíamos, mas minha mãe a tinha informado de que estávamos pela cidade, viajando de bicicleta, a Sheung mesma já tinha visitado o blog e visto fotos nossas; não tinha muito como errar, eu era o Affonso-filho-da-Fátima. A Sheung desceu do carro, em seguida seu filho com a namorada, o marido foi estacionar o carro e veio na sequência. Conversar com eles aliviou um pouco minha tensão de estar entrando em um país novo, numa região perigosa e precária. Perguntei sobre o interior do Paraguai, as condições das estradas, a qualidade da água e da comida, e as informações não fugiram muito ao que o Xande Muriana e outros haviam nos alertado: nas estradas não havia muita lei, vinham motos pela contra-mão no acostamento, o caminho era quase todo de mão-dupla com uma pista só em cada lado, não haviam indicações de velocidade pros carros. Apesar de todo esse cenário, esse encontro com a Sheung me passou muita positividade.

Mesmo sendo domingo, em Ciudad del Leste haviam lojas abertas, telões eletrônicos ligados, motoqueiros circulando e crianças oferecendo-nos para estacionarmos as bicicletas e irmos às compras. Passamos reto todo o miolo comercial da cidade em direção à estrada, e bastaram poucos quilômetros adentro para que se definissem algumas constantes da Ruta 2: ficou intuitivamente claro (pois não havia sinalização que atestasse isso) que a pista era exclusiva para carros, ônibus e caminhões, e que o acostamento dividiríamos com as motos, muitas, vindas das duas direções e constantemente carregando mais de 2 pessoas, inclusive guiadas por jovens de não mais que 14 anos (o que vai contra o ineficiente código de trânsito local); nunca vi tantos animais não só mortos, mas recém-mortos numa só estrada (e aqui volto atrás no que escrevi antes sobre cheiros de animais mortos me devolverem sensações de frescor, era uma nhaca pestilenta); nas laterais da estrada muitas casas com um jardim de uns 20 metros as separando do asfalto, e em muitas delas um comerciozinho que variava entre borracharias pra motos (“gomerias”), sorveterias (“helados”), barraquinhas de empanadas ou chipas (uma espécie de pão de queijo paraguaio), tábuas de madeira sobre as quais ficavam à venda chumaços de erva pra tererê (a mesma erva utilizada no chimarrão gaúcho ou no mate argentino, mas aqui bebem gelado), e em todo canto plaquinhas pintadas à mão anunciando “hay hielo” (há gelo); na frente de praticamente todas as casas, famílias ou vizinhos em roda ou semi-círculos voltados pra estrada, sentados numa cadeira que parece padrão em todo o território paraguaio (e que a Cida Muriana também tinha), conversando e tomando tererê o dia todo, e quase sempre parando a conversa pra nos seguir com o olhar (eu acenava com a mão sempre que podia, e quase sempre respondiam com tchauzinhos, gritos coletivos de “Suerte!”, uma ola de torcida de estádio, sempre muito calorosos); nos gramados entre o asfalto e as casas, uma quadrinha com rede pra jogar vôlei ou fut-vôlei, frequentemente com pessoas jogando (lembrando que era domingo); por todo o Paraguai cartazes, pinturas ou lembretes dos festejos do bicentenário de sua independência, ocorrida em 181o e comemorada em 2010; e, finalmente, muitos bois e vacas, e em menor número bodes e cabras, amarrados ao pescoço por cordas de uns 5 metros presas em estacas na terra ou amarradas em árvores, pastando nas laterais do aslfalto.

Mais um detalhe do tipo técnico, notado pelo Fabrício, é que por todas as estradas que percorremos no Paraguai só utilizamos duas coroas, isto é, o grupo de marchas mais pesadas e eventualmente as médias, nunca as leves, o que atesta que as estradas eram mesmo planas.

Kombi paraguaia (roubei essa imagem do google)

 

Cadeiras coloridas com encostos feitos de plástico emborrachado, muito comuns nos quintais de todas as casas do Paraguai

 

Três meninos que trabalham numa barraquinha de beira de estrada que vendia de tudo um pouco: azeite, arroz, sabonete, gelo...

Na primeira parada pro almoço já tivemos algumas dificuldades com a língua  e com a nova moeda que estávamos usando (o guarani), quase devolvemos o prato já montado por não nos entendermos com o garçom quanto ao preço combinado. O Fatício fala e entende muito bem o espanhol, eu ainda entendo nível Intermediate 2 e falo Beginner 3, mas no Paraguai a língua nativa, majoritária, é o guarani, que todos sabem falar e em muitos locais há mesclas indecifráveis das duas línguas (fora a nossa dificuldade em entender os sotaques e dialetos do interiorzão deles).

Há um paradoxo nos guetos sociais que faz seus moradores terem uma consciência mais ampla do “todo” do que as pessoas que vivem nos centros de poder, em geral voltadas pra si mesmas e acuadas pelo temor às “margens”sociais. Um exemplo claro é a quantidade de línguas que um estado-unidense comum fala, isto é, apenas o inglês, ao passo que um brasileiro médio deve saber o português e o inglês. Os paraguaios, além do guarani e do espanhol, aprendem desde cedo nas escolas, pelos canais de televisão e pelas músicas de fora também o inglês e o português. Da mesma forma, 3 ou 4 moedas circulam dentro do território paraguaio: o dólar, o real, o peso argentino e o guarani.

Antes de chegarmos ao nosso primeiro destino um guarda de estrada parou o Fabrício; eu vinha atrás e cheguei após uns tantos segundos de conversa. Com a mão apoiada no guidão da bicicleta do Fatício, como quem tivesse interesse na viagem mas também pra impedir que continuássemos, e com um olhar estrábico que não era de nascença, mas pela profissão (um olho mirava o Fatício, enquanto o outro circulava pela bike em busca de alguma brecha), ele nos perguntava “De onde vem?”, “O que vieram fazer aqui?”, “Pra onde vão?”, “Estão com a documentação em ordem?”, e cada pergunta assumia um tom ambíguo, ao mesmo tempo de curiosidade mas em busca de qualquer mote pra uma acusação que rendesse a ele alguma grana. Como Deus tá conosco a interrogação não seguiu muito além disso e fomos liberados.

CAMPO NUEVE 26/2/2012

Na noite anterior à nossa entrada no Paraguai não sabíamos ao certo em que cidade pararíamos na primeira noite, pois tanto no Google quanto nos mapas de que dispúnhamos imensas regiões do território paraguaio estavam em branco, como se não houvesse nenhum povoamento por lá ou, o que é mais provável, não houvessem sido mapeadas. Ainda assim constava o nome de uma cidade (que talvez fosse um povoado, uma vila…) chamada Dr. Eulogio Estigarribia, sem muitos mais detalhes além do nome e localização aproximada.

Chegamos quase anoitecendo em Estigarribia, que todos seus moradores conhecem por Campo Nueve. Uma barulheira, dezenas de carros e centenas de motos e pessoas nas beiras da estrada ouvindo forró universitário e outras músicas da moda no verão brasileiro, bebendo cerveja e jogando espuma de spray uns nos outros, tudo isso os festejos do Carnaval deles. Como em qualquer lugar por onde passamos chamamos muito a atenção das pessoas, e logo uns 5 ou 6 meninos começaram a acompanhar a gente também em bicicleta. Uns metros pra frente, paramos pra conversar com os meninos e logo juntaram-se mais pessoas, até que no meio do bololô de gente apareceu um brasileiro com jeitão de lenhador ou açougueiro. Blá blá blá e nos convidou pra passarmos a noite na sua casa, seguiríamos a moto dele até sua casa. Me perdi pelo caminho  de paralelepípedos que fazia a bicicleta rodar com dificuldade e liguei pela primeira vez o rádio que comprei com o Fatício em Ciudad del Leste, nos comunicamos e logo vieram me resgatar. Montamos a barraca no quintal da casa, num gramado com uma árvore, um cachorro bravo preso numa casinha ao fundo, um tanto de lixo espalhado pelo chão e três coelhos brancos sujos de terra vermelha. Fiz uma pergunta meio fofucha ao nosso anfitrião (que não consigo me lembrar o nome, chamarei de C.) sobre os coelhinhos, e ele respondeu: “Isso aí é carniça!”.

 

Nosso anfitrião brasileiro em Campo Nueve

Carniça ainda viva em Campo Nueve

A criançada em Campo Nueve me ajudando a encher o travesseiro inflável e o isolante térmico

Logo depois que montamos a barraca no quintal, C. nos chamou pra sala da casa, pra vermos e conversarmos com um de seus 4 filhos que há poucas semanas havia se acidentado de moto na Ruta 2 e por pouco não morreu. O menino, de uns 20 anos, magro até o osso e costurado da cabeça aos pés, contava junto com a mãe e o pai sobre os mais de 200 km que percorreram entre e a vida e morte até chegarem em Assunción pra que fosse atendido num hospital. Enquanto eu via as feridas do menino, e morto de fome pela pedalada do dia, tive que me retirar da sala quando senti minha pressão baixar, por muito pouco não desmaiei ali mesmo. C. disse que garantiria nosso jantar, mas após mais de uma hora de espera veio com um sanduíche bastante pequeno pra nossa fome, um pra cada um. É claro que reconheço sua boa intenção e agradeço, mas comida é o nosso combustível, precisamos comer com regularidade, o nosso suficiente e bem, na medida do possível. Reféns da sua boa intenção, dormimos com fome.

Nos impressionou como todos os filhos de C., assim como muitas outras crianças paraguaias que viríamos a conhecer, sabiam tudo de nomes, marcas, configurações, novidades e outros detalhes de aparelhos eletrônicos e tinham muita fluência pra mexer em celulares, rádios, mp3, provavelmente pela proximidade com Ciudad del Leste e pelas peculiaridades fiscais do Paraguai. Ainda à noite, conversamos com C. sobre algumas figuras nada paraguaias e muito fechadas que vimos morando em casas mais bem construídas do que o normal em longos trechos que percorremos no primeiro dia. C. nos explicou que eram canadenses ou americanos, que os paraguaios chamam de “menonitas”, com comunidades por quase todo o Paraguai (inclusive nos Chacos) e particularmente naquele trecho. São gente totalmente voltada para o trabalho, pra produção, nada festivos e muito pouco abertos à integração com o restante do país, mas como garantem os impostos das regiões que habitam são bem vindos pelo poder local. No café da manhã do dia seguinte iríamos comer na loja de uma fábrica de laticínios que abastece todo o Paraguai, pertencente a menonitas, e que ficava a poucos metros na estrada de onde dormimos. Comemos, digerimos e partimos.

SAN JOSÉ DE LOS ARROYOS 27/2/2012

Após os 5 dias de descanso em Foz do Iguaçú, voltar a pedalar me pareceu um pouco pesado, não sei se as pernas tinham enfraquecido, se as compras no Paraguai tavam pesando demais ou se havia mesmo algum problema na bicicleta. E já no início do segundo dia de pedalada pelo Paraguai  esse peso continuava, ainda que nas pausas pra beber água, tirar fotos ou comer um quitute o Fatício me falasse: “Que gostoso pedalar hoje, não?”. Não, Fatício, não estava! Após uns 30 km de uma distância de mais ou menos 110 km que perorreríamos até San José de los Arroyos, vendo o Fatício tomar a dianteira a perder de vista (costumamos pedalar, mesmo que às vezes distantes, num ritmo semelhante) e sentindo as pernas desgastando-se ainda que pedalando em retas totalmente planas, eu já tinha certeza de que minha bicicleta estava com algum problema, provavelmente nas rodas. Foi questão de tempo até ouvir um estalo: um raio do pneu traseiro se rompeu e já era o segundo na viagem.

Já escrevi no blog que há algum sofrimento nesse tipo de viagem; depois reescrevi a idéia, dizendo que se há sofrimento e porque há também algum problema; vou reescrever pela terceira vez, só alterando a ordem das palavras: se há um problema, há então sofrimento. Puta merda, sofri nesse dia! Xinguei por horas Zeus, Thor, Walter de Maria, Pirelli, qualquer deus, homem, empresa ou fabricante que tivesse a ver com raios. E o fato de estarmos numa estrada plana talvez só piorasse o que já tava ruim, eu era obrigado a pedalar o tempo todo pra me deslocar, com a roda quase oval de tão desalinhada, e travando costantemente nos freios. Cheguei de péssimo humor em San José de los Arroyos, onde após arranjarmos um espaço sob uma tenda num quintalzão anexo a uma igreja pra montarmos a barraca, saí pra tentar achar uma bicicletaria que pudesse resolver o problema. Fui e voltei toda a extensão da cidade umas 4 vezes seguindo a orientação de pessoas que me diziam onde haveriam “talleres”(oficinas), mas invariavelmente eram para motos. Muito raramente vimos bicicletas no interior do Paraguai, e quando haviam eram muito simples, não tinham nem marcha. Como o comércio já estava fechando, fui obrigado a deixar pra resolver o problema na manhã do dia seguinte. Com o sono leve, eu acordava constantemente no meio da noite, ou de bobeira ou com um bando de cachorros que ficavam apavorando ao redor da nossa barraca durante a madrugada.

Duas opções de almoço na estrada: ou macarrão com molho e carne, ou mandiocas cozidas sem sal e frango frito, ambos pratos em porções muito menores do que costumávamos comer no Brasil. Pra beber, Fanta-abacaxi.

Barraca armada nos fundos da Igreja de San Jose de los Arroyos

 

Taller de motos em San Jose de los Arroyos

 

O culto às motos no Paraguai

Acordamos e logo fui buscar um novo taller. Havia a informação de um único mecânico de bicicletas na cidade, mas tivemos que esperar um bom tempo até que ele aparecesse na sua oficina, uma casa de um cômodo, de tijolo exposto, na beirada de um terreno abandonado e sem nenhuma indicação sobre o que se tratava o espaço. Quando o mecânico chegou, disse que sim, conseguiria arrumar o raio. Acompanhei de perto a gambiarra que ele fez, ao fim eu lhe disse que aquela solução não serviria pra mim, que acabaria rompendo mais raios, e ele aceitou que eu não pagasse. Nada resolvido, e eu pagava o preço de ter escolhido viajar com uma bicicleta com ítens que eu considerava simples, corriqueiros, de fácil acesso (como as marchas, as coroas), mas as circunstâncias provavam que eu estava errado.

Menina linda e muito bacana com quem fiquei conversando enquanto aguardava o mecânico de bicicletas aparecer

 

Mecânico de bicicletas em San Jose de los Arroyos

 

Senhora paraguaia vendendo erva para tereré na rua

Erva para tereré à venda em porta de casa em S.J. Arroyos

Faltavam pouco mais de 100 km até Assunción, e já eram quase 10 da manhã. Decidi junto com o Fabrício que ele seguiria de bicicleta, e eu faria o trecho num ônibus, levando a bicicleta e as bagagens no bagageiro. Ligamos nossos rádios, anotei o contato da pessoa que nos hospedaria pelo couchsurfing em Assunción, Fatício partiu e, como vi que passavam ônibus pra Assunción a uma frequência bastante regular (o tempo de viagem do ônibus seria de 2 horas, de bicicleta umas 7 horas), decidi relaxar o stress convencendo uma moça que trabalhava numa vendinha a me vender e preparar um tereré. É curioso como o tereré, muito mais que uma bebida para os paraguaios mas um verdadeiro elemento de união e integração entre famílias e comunidades, e abundante por todo o país, não é comercializável como bebida. E como o tereré não se bebe sozinho, sentei-me pra conversar e beber com dois moços locais muito gente finas, treinando meu espanhol, perguntando de tudo um pouco e esperando o ônibus chegar.

Tereré: água geladíssima, neste caso preparada junto com umas ervas digestivas, a ser despejada pouco a pouco no corno com a erva do tereré

O primeiro ônibus quis me cobrar um abuso pra levar a bicicleta, o segundo parou depois saiu andando sem dar explicações, o motorista do terceiro foi solícito, não cobraria nada pra levar a bicicleta mas estava sem espaço no bagageiro. Peguei o quarto ônibus. só paguei a passagem e passei a viagem realmente lamentando estar fazendo aquele trecho dentro de um ônibus, que me dava a sensação de estar assistindo a uma televisão com alguma interatividade.

ASSUNCIÓN 28/2/2012 a 3/3/2012

Cheguei na rodoviária de Assunción umas 15:00, e assim que estava com a bicicleta pronta já busquei me informar com taxistas onde havia uma bicicletaria que pudesse resolver meu problema de raio partido. A avenida que passava em frente à rodoviária era um tanto caótica, e era nela mesma, há uns dez quarteirões da rodoviária, onde me disseram que havia uma bicicletaria. Chegando lá o único mecânico estava de saída e não voltaria no mesmo dia. Tive que pedalar no sentido contrário da mesma avenida mais um 25 quarteirões até chegar numa outra bicicletaria onde me disseram que não tinham a ferramenta para abrir a catraca e trocar corretamente o raio rompido. Mas nessa segunda bicicletaria havia um homem, o Santiago, que morou por anos no Brasil e se dispos a me ajudar, primeiro me emprestando seu celular para que eu ligasse para o Giulio, nosso anfitrião pelo couchsurfing em Assunción. Após avisar o Giulio de que eu já estava na cidade, o Santiago propôs levar-me de carro até o apartamento do Giulio, que ficava na região central da cidade. Seu filho, o Lucas, veio junto no banco de trás, segurando a bicicleta para que não caísse do porta-malas aberto.

Chegando ao endereço do Giulio, um prédio bem na região central onde pareciam viver pessoas com renda muita acima da média paraguaia, agradeci e me despedi do Santiago e de seu filho, o Lucas, e conheci o Giulio, que estava me esperando na portaria e me ajudou a levar as bagagens para cima. O Giulio, além de trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de Assunção, era editor de uma televisão local, então trabalhava muito e também era muito entendido das coisas, um anfitrião cujas conversas conosco eram sempre muito ricas. Dividia o apartamento com mais dois caras, e já recebeu dezenas de pessoas em sua casa pelo couchsurfing, até mesmo outro ciclista que pretendia percorrer o mundo todo.

Giulio, pouco antes de começar a tocar com a Sinfônica de Assunción

Pouco antes de escurecer o Fabricio chegou e, depois do banho, ambos preparamos o espaço onde dormiríamos na sala do apartamento. À noite o Giulio nos chamou pra tomarmos uma cerveja num pub que ficava no mesmo quarteirão do seu prédio e que frequentava quase diariamente, e como  passaríamos mais 3 dias sem pedalar não haveria problema em tomar umas (tantas). Andar com o Giulio pela rua e pelo pub nos dava a sensação de estarmos andando com uma figura pública, quase todo mundo o cumprimentava, ele cumprimentava a todo mundo, nos apresentava a quase todos, e lhes contava nossa saga enquanto consultava no balcão do pub quanto estava devendo pelas noites anteriores e pedia mais uma cerveja e uma porção de petiscos monstruosa de tão grande. Comemos, bebemos, sem pensar muito nos valores, mas eu confesso que fiquei com medo da conta no final. Mas uma vantagem de se estar bastante bem fisicamente, pelo exercício quase diário na bicicleta, era que bebendo pouco já ficávamos bem belezura, então gastávamos menos grana pra beber e também ferrávamos menos o corpo.

Se já não bastasse o tanto de sorte que temos tido frequentemente ao longo da viagem, a certa altura da noite o volume da música no pub baixou e veio uma garçonete gritando um número; um cara foi sorteado e ganhou o equivalente a uns 100 reais em consumação. Na sequência a garçonete anunciou um novo número, e o mesmo cara foi sorteado pela segunda vez, não houve quem não tenha pensado que ou ele era muito sortudo ou filho do dono ou namorado da garçonete. Ela anunciou o terceiro e último sorteado da noite, olhei o papelzinho que estava comigo e acabei cobrindo com o prêmio não só toda nossa conta do dia mas também a dívida anterior do Giulio com o pub.

Assunción é uma cidade que tem todos os elementos indispensáveis para uma cidade grande: trânsito caótico, violência urbana, concentração de grana em áreas nobres da cidade, favelas e zonas periféricas criminalizadas, comércio abundante, comunicação com o resto do mundo. Haviam também casas noturnas, grafiteiros, lojas de tatuagem, lan-houses, centros de estética, shoppings, lojas de carro importado, parques, clubes, hotéis, bares, embaixadas e consulados, grandes avenidas, limpadores de pára-brisa e acrobatas nos faróis, e uma imensa região periférica. A diferença fundamental em relação a uma cidade como São Paulo é a escala, então em Assunción nos sentíamos de certa forma “em casa”. Assistimos a concertos musicais (com o Giulio tocando com a orquestra da cidade); o Fabrício assistiu a uma peça de teatro na Plaza de los Heroes (no feriado que comemorava os heróis da pátria);  comíamos refeições de madrugada no Lido Bar, um reduto da boemia e classe artística de Assunção e que se assemelha muito ao Bar do Estadão em São Paulo (com a diferença de que no Lido só há mulheres, no balcão, na cozinha e no caixa); acabei encontrando uma bicicletaria que resolveu meu problema de raios a um preço irrisório.

Talvez valha então buscar o que a diferencia de outras grandes metrópoles globais, mas sinceramente não me vem à mente nada que a particularize além do que já é característico do Paraguai como um todo, como o Rio Paraná que atravessa todo o sul do país, o consumo constante de tereré, o patriotismo meio tradicionalista, a afirmação reiterada de uma identidade nacional a partir de tradições que a muito custo ainda sobrevivem (como por exemplo os violeiros), e também a partir de símbolos nacionais meio desgastados, o maior de todos na figura onipresente do Mariscal Solano Lopez, “herói” paraguaio que no entanto, com seus delírios imperialistas, levou o país à bancarrota com a Guerra do Paraguai.

Vista da janela do apartamento do Giulio em Assunção, onde se vê parte da região central e o Rio Paraná ao fundo.

Grafite que vimos ser pintado na noite anterior a essa foto. Os grafiteiros nos explicaram que nesse quarteirão viveu o escritor vanguardista Augusto Roas Bastos, autor de "Yo, el Supremo", considerada uma das obras capitais em língua espanhola e pouquíssimo conhecida.

Caminhando por Assunção

À noite no Bar Lido, depois do concerto da orquestra municipal, pedindo uma "sopa paraguaia" (que é uma espécie de torta bem consistente)

Caminhando com o Giulio pelo clube de esportes às margens do Rio Paraná

Dedicamos nosso último dia em Assunção praticamente só pra escrever textos pro blog ou resolver assuntos na internet, e na manhã do domingo partimos em direção a Quindii, já na Ruta 1, estrada mais tranquila e que liga Assunção a Encarnación, nosso último destino no Paraguai.

 

* Procurem no youtube ou baixem no Soulseek, do disco “Guaxo” da Helena Meirelles a faixa 15 – Fazenda Jararaca, e a faixa 16 – Sobre Boiadeiros e Bordéis, pra saberem mais. E pra ouvirem ela tocando e cantando em guarani uma canção que fala sobre o Mariscal Solano López, a faixa 9 – Cerro Corá, do mesmo disco.

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Entrevista que fizemos em Prudentópolis-PR https://www.ushuaialaska.com.br/entrevista-que-fizemos-em-prudentopolis-pr/ https://www.ushuaialaska.com.br/entrevista-que-fizemos-em-prudentopolis-pr/#comments Fri, 02 Mar 2012 05:24:35 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=400 Há quase duas semanas respondi a uma entrevista em Prudentópolis sobre nossa viagem de bicicleta. Só há poucos dias conseguimos achá-la publicada na internet: http://intervalodanoticias.blogspot.com/2012/02/ciclista-que-vao-percorrer-as-americas.html

Uma correção: eu não digo “místico”, e sim “turístico” num trecho ao final da entrevista. Houve um pequeno corte no som que dá essa impressão errada.

Obrigado Élio Kohut pela entrevista.

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Foz do Iguaçú-PR e Ciudad Del Leste https://www.ushuaialaska.com.br/foz-do-iguacu-pr-e-ciudad-del-leste/ https://www.ushuaialaska.com.br/foz-do-iguacu-pr-e-ciudad-del-leste/#comments Fri, 02 Mar 2012 02:36:10 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=353 Fazem já quase duas semanas que não publicamos nada no blog, ou por falta de internet ou por desorganização nossa. Mas confesso que pra mim, registrar ou contar o que estamos passando tem se imposto como uma necessidade tão urgente quanto comer, ir no banheiro ou jogar video-game (que saudades de Zelda! Sério…). Agora já estamos em Asunción no Paraguai, quase partindo em direção a Encarnación. Vou tentar lembrar o que aconteceu desde Cascavel:

Momentos antes de partirmos de Cascavel rumo a Foz do Iguaçú, um caminho de 140 km que pretendíamos percorrer em um só dia, tentávamos descobrir no google maps alguma informação sobre o relevo deste trecho, sem sucesso. Se houvessem serras ou subidas como houveram em todos os dias anteriores à nossa chegada em Cascavel, essa distância iria nos esgotar, mas não queríamos ter que dividir este trecho em dois dias de viagem. Quem concluiu que o caminho seria plano foi o Túlio (nosso anfitrião na cidade): “Todas as cidades a partir de Cascavel até Foz do Iguaçú recebem indenização pelo alagamento devido à construção da barragem na hidroelétrica de Itaipú”.

 

Affonso, Túlio e Fabrício na nossa despedida de Cascavel-PR

No caminho, mais um tanto de toda aquela paisagem que cansamos de ver ao longo de São Paulo inteiro e muito do Paraná: quilômetros de plantações de soja, eucalipto, pinho, e em menor escala milho. Eu ficava imaginando aquelas crianças do interior que quando vêem o mar pela primeira vez tem uma sensação de imensidão, de infinito, e como eu tinha quase a mesma sensação ao olhar os campos de soja ou plantações de eucalipto, a perder de vista, mas sem o deslumbre da criança, e sim com a angústia de quem vê as evidências da ganância pelo lucro como uma forma de miséria. Não era muito diferente, pra mim, do que estar diante de um deserto (com todo respeito aos desertos, que tô cheio de vontade de conhecer).

Campo de soja entre Cascavel e Foz do Iguaçú

A foto ficou ruim, mas na propaganda uma mão segura uma semente de soja, que é igual a muita grana.

Durante a pedalada pelo estado do Paraná, os inúmeros rios (alguns muito, muito bonitos), as araucárias, um grande trecho onde a cada quilômetro havia uma olaria emanando cheiro de tijolo queimado pelas chaminés, e também as serras, tudo isso dava um respiro e outro ritmo pra o cenário repetitivo que se revezava entre soja, eucalipto e pinho. Quanto mais perto chegávamos de Foz, mais esse cenário era invadido por cartazes (outdoors) realmente enooormes anunciando lojas ou produtos a venda no Paraguai.

Anúncio da loja paraguaia Monalisa, constante em todo o estado do Paraná.

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Um episódio solto, que aconteceu poucas horas antes de chegarmos em Foz: fazia muito calor, e o Fatício me esperava na sombra de uma árvore a poucos metros de um posto de gasolina onde reporíamos nossa água. Uns 15 metros antes da sombra, sentada na estrada no exato ponto onde passam os pneus direitos dos carros e ônibus sobre o asfalto estava sentada uma pomba, parada e quieta, parecia que chocava um nada. Eu passei a pomba, cheguei na sombra e comentei com o Fatício: “Olha a suicida lá”. Nem 10 segundos depois veio o caminhão e só ouvi um “ploc” que queria poder apagar da cabeça. O Fatício viu e comentou: “É, pegou mesmo”. Nem virei o rosto e seguimos pro posto. O Fatício voltou a falar: “Cara, que estranho!”. Ficamos com isso na cabeça até que um frentista, muito sorridente e animado, chegou perguntando: “Posso saber de que ponto do planeta vocês são?”

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Nessa viagem muita coisa ganha aquele frescor dos cheiros na infância, como o cheiro de pão quentinho que vem te acordar na cama de manhã. Mesmo o cheiro de chiqueiro, quando passava um caminhão com dois andares lotados de porcos berrando loucamente, ou de um animal morto na beira da estrada, tudo isso estranhamente tem me devolvido essa sensação de frescor. E eu, que já não tenho mais avós vivos, tive de volta a sensação de um acolhimento de vó nos 5 dias que passamos em Foz, na casa da Cida Muriana, parente distante e até há pouco tempo desconhecida do Fabrício. Mesmo comendo mais de 2 quilos por dia durante as pedaladas (que eu nunca soube pra onde vão), na Cida me senti naquele típico regime de engorda em casa de vó (uma avó jovem, diga-se de passagem).

Cida Muriana, logo após nossa chegada. Reparem e lembrem desse tipo de cadeira, falarei dela no post sobre o Paraguai.

E o Fatício, recém apresentado à Cida, e ainda suado pela viagem.

Logo que chegamos, muito cansados mas rindo à toa, a Cida já nos trouxe copo d´água geladinha, depois achocolatado, depois fez a janta, depois sorvete, e foi assim todo dia, mesmo com o Fatício, a Juli e eu insistindo em dividir as tarefas e os gastos. E toda essa comida e amor davam e sobravam pra nós quatro, mais a Jú e o João (filha da Cida e seu marido), o Xande e seus três filhos (Luiza, Xandinho e Angelo), o Lucas, o Pedro, e quem mais morasse ou frequentasse a casa da Cida.

No primeiro dia após nossa chegada (e da Juli, que nos acompanhou de Cascavel a Foz de ônibus) fomos conhecer a usina de Itaipu, ou mais propriamente, Itaipu Binacional (é tanto brasileira quanto paraguaia, ainda que menos de 10% da produção de energia seja destinada ao Paraguai). É, junto com as Cataratas do Iguaçú e Ciudad del Leste, um dos três lugares absolutamente assombrosos da região. A Juli escreveu um texto que publicamos aqui chamado “dois barbudos no templo do capitalismo” que fala muito bem sobre Itaipú, e eu queria mesmo que o Fatício também falasse algo, que ele é muito observador das questões políticas, econômicas, e de todo o custo humano envolvido na construção e manutenção da usina. Fala Fatício, faz favor!!

No segundo dia fomos conhecer o lado argentino das Cataratas do Iguazú. Eu já havia visitado duas vezes as Cataratas, até então apenas pelo lado brasileiro. Na primeira vez em que fui, um dia de muito sol e com as quedas de água especialmente volumosas, tive uma das experiências sensoriais mais intensas que já viví: chegando na ponta da passarela de metal que vai em direção à queda da Garganta do Diabo, era uma imensidão de água caindo, e aquele volume todo fazia o rio que corria sob a passarela formar inúmeros redemoinhos na superfície da água, e também redemoinhos de vapor ou gotas muito finas que se precipitavam pra fora da água em turbilhões; eu via arcos-íris em todo canto onde olhava, até um bambolê de arco-íris ao redor de mim, aquilo tudo parecia um enorme e truculento berçário de arco-íris; era água que te molhava de cima pra baixo, de baixo pra cima, de quatro, de lado, por trás…e quando olhei pra cima vi uma enorme esfera branca flutuando a poucos metros do início das quedas, toda de vapor de água condensada e rodando lentamente, parecia um planeta em branco. Tudo isso junto era um exagero de beleza concentrada, e nenhuma foto nem vídeo chegaria perto de expressar o que vi ou que pode acontecer por lá.

O lado argentino é sem dúvida muito mais bem estruturado, amplo e abrangente do que o brasileiro. É um enorme parque, no mínimo 10 vezes maior em espaço, variedade de opções de passeio e visões das Cataratas do que o lado brasileiro. E não posso deixar de falar do enorme fluxo turístico nos dois parques, um frenesi constante que, se bobear, também te contagia. Já falei muito das quedas, vejam algumas fotos e não deixem de conhecer quando puderem:

Juli esperando pra pegar o barco que leva até a ilha entre algumas quedas

 

Xande, Fatício e Juli no barco

 

Cida Muriana sobre a queda da Garganta do Diabo

A Garganta do Diabo vista de cima

Acordamos umas 8:00 no terceiro dia pra atravessarmos a Ponte da Amizade que liga Foz do Iguaçú à segunda maior cidade paraguaia, Ciudad del Leste. Como pretendíamos fazer algumas compras por lá, tivemos que esperar as casas de câmbio abrirem pra trocarmos reais por dólares.

Fatício e Juli observam o Rio Paraná através da cerca aberta na Ponte da Amizade

Tampouco seria minha primeira vez em Ciudad del Leste, mas não canso de ficar assombrado com a agressividade do comércio patente em todo canto da cidade; é o capitalismo na sua forma mais crua, sem terno nem etiqueta. Eu já estava mais ou menos avisado sobre o clima de velho-oeste no Paraguai, mas não deixei de me assustar com os seguranças particulares armados com escopetas ou metralhadoras nas portas de lojas e até de restaurantes. Nem com os vendedores de rua, homens, mulheres, velhos ou crianças, te assediando em massa com as mesmas estratégias de corrupção: “Camisinhas musicales, 5 reais…3 reais…1 real…Cocaína, haxixe?…”. Dentro de muitas lojas, um canal de televisão local exibe permanentemente e ao vivo um ângulo fixo da ponte da amizade, pra que os comerciantes avaliem como está o “clima” nas aduanas. A atmosfera real de malandragem, de mutreta, nos fazia tentar conter a histeria das compras pela extrema cautela de quem não quer ser sacaneado ou assaltado nem na rua nem nas lojas pelos vendedores, mas mesmo assim quase não pudemos evitar mais de uma situação que poderia ter nos dado muito prejuízo.

Juli compra meias

 

 

Interior de loja em Ciudad del Leste

Conhecer certas cidades através de moradores com conhecimentos específicos pode te propiciar uma profundidade de contato que você nunca poderia ter sozinho. Passei por isso na segunda vez em que visitei Brasília, quando tive o privilégio de conhecer outros aspectos da cidade através da mãe de uma amiga de lá, que trabalhava no Congresso e fez 3 faculdades: arquitetura, ciências políticas e gestão pública. Mesmo sem ter me convencido a gostar de Brasília, eu não poderia ter tido anfitriã melhor pra me apresentar os meandros daquela cidade. O mesmo aconteceu com o João, marido da Jú (filha da Cida), que mora em Foz e trabalha em Ciudad del Leste numa importadora. Foi ele quem nos deu os contatos de lojas nas quais poderíamos confiar, e a quantidade de dicas, macetes, informações que pegamos dele é incalculável. Invejo o Fatício por ter podido ir uma outra vez a Ciudad del Leste de moto na garupa do João: acho que andar de moto no trânsito realmente caótico e sem leis de lá, cruzando as fronteiras por corredores estreitíssimos e super concorridos, e mesmo com todo o risco envolvido, é uma das experiências mais intensas e específicas de lá. E fiquei pasmo com o João quando, ligando pela primeira vez o iPod que comprei e ao ver que estava todo escrito em chinês, ele soube trocar, às cegas e depois de uns 15 minutos mexendo no aparelho, o idioma padrão pra português.

Juli, Fatício, Juliana, Cida e Affonso na nossa partida de Foz do Iguaçú

Após os 5 dias de muito turismo, compras, família e descanso em Foz, novamente nos preparamos pra despedida, da Cida e sua família, e também mais um “até breve” pra Juli, que após uma semana nos acompanhando voltava pra São Paulo.

 

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Segunda semana no Paraná (12 a 19/2/2012) https://www.ushuaialaska.com.br/segunda-semana-no-parana-12-a-1922012/ https://www.ushuaialaska.com.br/segunda-semana-no-parana-12-a-1922012/#comments Wed, 22 Feb 2012 03:33:43 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=297 No último domingo completamos 3 semanas de viagem na casa de mais um anfitrião do couchsurfing, o Túlio, em Cascavel-PR. Hoje, já em Foz do Iguaçú, estamos muito próximos tanto de sair do estado do Paraná quanto de cruzar nossa primeira fronteira pra outro país. Dá pra dizer que a primeira etapa de nossa viagem foi completada.

Eu queria relembrar aqui a alegria que senti ao cruzar a divisa de estados entre São Paulo e Paraná. Ainda em São Paulo, comentando com amigos sobre os planos da viagem, eu costumava dizer que, mesmo com a imensa ambição de nossa viagem (descer pro Ushuaia e subir ao Alaska), se eu conseguisse chegar no Paraná já seria um grande feito. Então o limite mínimo do meu fracasso já foi superado e estamos cada vez mais adaptados às condições da viagem. Daqui pra frente os desafios tendem a ser maiores: maior necessidade de adaptação à novas línguas, hábitos e costumes locais, comidas, condições climáticas. As bicicletas também já estão começando a apresentar desgastes, pelo uso intenso e o peso, e a mudança de tipos de estrada (do asfalto pra estradas de rípio, terra ou outros) pode aumentar esse desgaste. O vento, que até agora pouco ou nada interferiu no ritmo da pedalada, daqui pra frente tende a ser um fator determinante caso esteja contra ou a favor de nossa direção. E todas as subidas que enfrentamos (e foram muitas e sempre) devem ser mesmo só a raspa da sujeira debaixo da unha do dedinho do pé de uma miniatura em argila, mal-feita, feia e por R$1,99, da cordilheira dos Andes.

DIÁRIO DA SEMANA

Saindo de Ponta Grossa na manhã de segunda-feira passadas, depois da despedida pra Eva e o Cláudio (que, curiosamente, se despediram com aquela saudação típica japonesa, mas discretamente), seguimos em direção a Prudentópolis, uma pequena cidade com 70% da população descendente de ucranianos ou poloneses. Logo na entrada da cidade, um portal de bem-vindos com algumas características típicas de igrejas ortodoxas e  construções do leste europeu. No pátio de uma escola, durante o recreio, só dava criancinha de cabelo branco-quase-loiro correndo, e as professoras gritando: “Damasceno, larga o cabelo da Lyaksandra! Joãozinho e  Ivaniev, brincadeira de mão não pode!”. Era curioso parar numa loja ou bar e ver aqueles homens chucros, aquele típico capiau interiorano do Brasil passando a tarde com um copo de cerveja na mão e ruminando umas consoantes na boca, mas na figura de um eslavo.

Chegada a Prudentópolis-PR

Mais uma vez fomos buscar a secretaria de esportes local, e mais uma vez pudemos dormir num banheiro do ginásio de esportes.  Guardamos nossas coisas e fomos tomar sorvete, conhecer duas igrejas locais (a ucraniana e a polonesa, fotos abaixo), e comprar uma espécie de linguiça ucraniana, a cracóvia, que podia ser de porco ou frango. Compramos a de porco, mais um queijinho ucraniano bem macio, e um pão feito no dia, pra nosso jantar e café da manhã do dia seguinte. À noite no ginásio, conversei um bom tempo com o guardião, um homem com um jeito muito singelo de falar das próprias fraquezas ou dores (a propósito, não foi o primeiro paranaense em quem reparei esse jeito). Me contou devagar, baixo, um pouco lamentoso mas tranquilo: “Olha, piá, nunca fui bom de bola. Eu gosto de bola, sabe, mas meu pé não encaixa, daí”. Acho que sou incapaz de expressar como ele falava, mas tentei aqui só pra registrar. Antes de dormir, ele nos alertou: “Se começar a ouvir uns barulho na noite repara não, é a coruja que entra no ginásio pra caçar filhote de pombo e bate com a asa no teto”.

No banheiro do ginásio de esportes em Prudentópolis-PR

A igreja ucraniana de Prudentópolis

O interior da igreja, com as imagens de santos pintadas sobre um fundo dourado, típicos na iconografia cristã ortodoxa

Tocando o sino

A igreja polonesa

Fomos dormir à noite sem termos decidido o destino do próximo dia. Nem olhamos o mapa. De manhã, pouco antes da partida, combinamos: “vamo indo. Uma hora a gente pára.”. É gostoso sair meio sem rumo por aí, mas a falta de planejamento também traz alguns problemas. Depois de termos pedalado mais de 100 km, encarado uma serra muito extensa com subidas infinitas, já com as pernas cansadas, uma ameaça constante de chuva e sem saber direito quanto mais teríamos que pedalar até achar uma fazenda, povoado, distrito ou cidade, paramos num posto de atendimento da estrada pra descansar, tomar chafé e pedir orientações. A próxima cidade chamava-se Candói, e o primeiro bairro dela, Lagoa Seca, ficava a uns 13 km de onde paramos.

Araucária pouco antes de começarmos a subir uma das serras paranaenses

Parada pra descanso no mirante da serra

O que uma tubaína faz com um jovem...

Em direção à chuva

Parada no posto de atendimento da estrada

Assim que vimos um posto de gasolina com restaurante aberto, e do outro lado da estrada algumas casas e um colégio fechado, paramos. Já eram quase 18:00, e não tínhamos idéia onde buscar hospedagem. Parando pra comprar umas bananas (boas pra recuperação muscular) numa espécie de padaria/mercadinho, o dono nos sugerir dormir numa construção ao lado de sua venda, um galpão em construção. Conversamos com o pedreiro responsável pelo espaço, que topou na hora: “OOoi piazão. Fica a vontade, piá, pode por suas coisa naquele quarto ali, depois fecha as porta com o madeirite e aquelas tábua de madeira que entra cachorro à noite” (os paranaenses dizem piá pra todo moço ou rapazinho. Pras mocinhas em quem o piá tem algum interesse, chamam de guria). Demos uma boa varrida no chão de um quarto, deixamos nossas bicicletas e bagagens lá, e atravessamos a estrada pra comer no restaurante do posto de gasolina e entrar na fila do banho junto com os caminhoneiros.

Na manhã do dia seguinte um imprevisto: o pneu traseiro da minha bicicleta acordou murcho. Trocamos a camara e deixamos a furada pra remendar depois, correndo assim o risco de não ter uma camara reserva caso outra furasse no caminho. Fomos em direção a Nova Laranjeiras. Depois da parada pro almoço, um novo imprevisto: dessa vez, o pneu do Fatício estava murcho. Ele remendou alí na hora, retirou com uma pinça o meliante incrustrado no pneu (um fiapo de arame de pneu de caminhão, a mesma causa do meu furo). Nessa parada pra almoço e remendo, já começamos a ver com alguma frequência placas de carros argentinos e chilenos, até conversamos com um senhor chileno de uns 50 anos que já teve sua fase aventureiro de moto até alguns anos atrás.  Retomamos o pedal só depois das 15:00, o que nos obrigou a pedalar com mais velocidade pra tentar chegar em Nova Laranjeiras antes das 18:00.

Os piazinhos curiosos com o conserto do pneu furado da bicicleta do Fatício, depois de nosso almoço a caminho de Nova Laranjeiras

Depois de uma pedalada forte, chegamos em Nova Laranjeiras a tempo, mas tivemos que esperar até mais de 20:00 até que alguém aparecesse no ginásio de esportes. Passamos na prefeitura, num outro ginásio, na escola municipal (conversei com o diretor), todos falavam do ginásio de esportes como o local pra ficarmos mas ninguém sabia dizer quando nem se abriria com certeza. A dica mais incisiva veio de uma moça, ou eu diria, uma guria, que atendia sozinha no balcão de uma lanchonete em frente ao ginásio. Tá certo, eu até ouvi dela que às 20:00 vinha um grupo pra aula de caratê, mas minha atenção tava mesmo vidrada nas suas…opções de comida. Tomei coragem e perguntei se eu podia comer uma de suas…paçocas. 15 centavos o torrão. Um pouco secas mas ainda assim muito gostosas essas paçocas do interior! Deu 20:00 Mais uma vez conseguimos hospedagem através do Secretário de Esportes (o Hamilton, muito gentil), mas dessa vez não no ginásio: não sei como, nem quem financiou, mas ele veio com a chave de um quarto do único hotel da cidade, onde poderíamos passar a noite. Agradecemos muito, dormimos numa cama fofinha e partimos em direção a Ibema, a última pequena cidade antes de Cascavel, a quinta maior cidade paranaense.

Em Ibema, fomos direto pra prefeitura, onde tomamos nosso primeiro chimarrão (disposto “publicamente” em cima de um balcão de atendimento da prefeitura, com a garrafa térmica ao lado). Nos apresentaram a um senhor que nos encaminhou ao assistente social da cidade. Fomos todos até uma casa abandonada, com alguns brinquedos infantis jogados no chão. A casa onde passaríamos a noite era uma antigo orfanato, hoje transferido pra outro terreno, e tinha vários quartos, chuveiro quente e pulgas, mas tava ótimo. O Fatício passou a tarde e parte da noite tentando resolver alguns problemas meio graves que surgiram na sua bicicleta: o pneu que compramos, da melhor qualidade, estava com umas bolhas nas laterais e certamente condenado, deveria durar 8000 km e não durou muito mais que 1000 km; ao desmontar a corrente pra limpar e recolocá-la, uma das peças do câmbio que deveria rodar não rodava mais, e isso impediria ele de pedalar. E na minha, o pneu traseiro estava rodando com dificuldades, travava no freio, o que me obrigou a afrouxar um pouco o freio. O Fatício passou horas mexendo na bike, e na manhã seguinte, não nas melhores condições, partimos pra Cascavel esperando encontrar lá uma boa bicicletaria que resolvesse tantos problemas surgidos tão bruscamente.

Fatício mexendo nas bicicletas em Ibema-PR

Jantar em Ibema: macarrão temperado e arroz no pote plástico doado por uma senhora, e completamos com atum em lata

A casa onde passamos a noite em Ibema

Já a poucos quilometros de Cascavel, um ciclista com quem cruzamos no sentido contrário nos alcançou após uma meia hora de nosso primeiro encontro, pouco antes de pararmos pra tomar um suco de milho na beira da estrada. Ele se chamava Roberto e ficou admirado com o que estávamos fazendo, disse que sonha viajar de bike, quis saber alguns detalhes, tirar fotos conosco. Voltaríamos a encontrá-lo já em Cascavel, onde ele pegou nossos contatos, ofereceu sua casa para ficarmos (mas já tínhamos um novo contato do couchsurfing acertado), e nos indicou uma boa bicicletaria pra vermos com calma todos os problemas surgidos nas duas bicicletas nos últimos dias. Os mecânicos eram ótimos, cobraram baratíssimo e deixaram as bicicletas zeradas. Saímos da loja pra casa do Túlio, contato do couchsurfing que nos hospedaria por duas noites, e onde iríamos encontrar também nossa primeira visita extraordinária durante a viagem: a Juli, namorada do Fatício, que aproveitou o feriado de Carnaval pra sair de São Paulo e nos acompanhar de Cascavel até Foz do Iguaçú.

Já estamos em Foz, mas deixarei o relato dos últimos 3 dias pro Fatício.

CONSIDERAÇÕES

Com exceção de Prudentópolis, todas as cidades seguintes por onde passamos tiveram poucos atrativos (fora a paçoquinha memorável de Nova Laranjeiras, e uma menina da barraca de pastel em Ibema: pedi um de “*eijo” pra ver o que vinha…Também um pouco seco, mas bem recheado). É claro que nunca se sabe quando alguém interessante vai conversar contigo, ou o que pode te cativar mesmo nos lugares menos suspeitos, e muitas coisas interessantes aconteceram sim durante esses últimos dias, como em todos os outros dias. Acontece que nessa semana minha atenção ficou mais focada nas pedaladas mesmo, em tentar desenvolver técnicas pra render melhor na marcha pesada durante subidas, na escuta de música como motor, no uso de acessórios como os óculos, a sapatilha, as luvas, a calça elástica apertadinha que acaba com nossa moral.

A calça apertadinha de ciclista, e as sapatilhas

Vou deixar pra escrever com mais calma sobre esses acessórios e quem sabe também sobre algumas técnicas para pedalar que tenho aprendido numa próxima postagem. Estamos realmente muito bem por aqui, e espero que quem está nos lendo também esteja bem, e curtindo nos acompanhar. Um grande beijo a todos.

 

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Só fotos (do Affonso) – São Paulo e Paraná (de 22/1 a 14/2) https://www.ushuaialaska.com.br/so-fotos-do-affonso-sao-paulo-e-parana-de-221-a-142/ https://www.ushuaialaska.com.br/so-fotos-do-affonso-sao-paulo-e-parana-de-221-a-142/#comments Wed, 22 Feb 2012 01:30:13 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=256

Arrumação das malas na véspera da partida, na sala da minha mãe em São Paulo.

Preparando um ovo cozido no apartamento do Fatício pra ver se o fogareiro tava funcionando.

Montando a barraca pela primeira vez, também no apartamento do Fatício e Juli (e Paco, o gato preto do rabo torto)

Minha mãe junto ã bicicleta carregada, na noite anterior à partida, quando demos uma volta-teste pelo Minhocão em São Paulo

Momentos antes de nossa partida, no portão da Escola Técnica Federal de SP. Nossas famílias e amigos na despedida.

PRIMEIRO DIA DE VIAGEM – 22/1/2012

Uma das já várias cobras mortas (e uma viva) que cruzamos pela estrada. Aqui, entre Embú e Cotia-SP

Chegada à noite em Ibiúna-SP, no primeiro dia de viagem

Garapa dos japas na estrada a caminho de Pilar do Sul-SP

Pedalando a caminho de São Miguel Arcanjo-SP

SÃO MIGUEL ARCANJO/SP (de 24 a 29/2/2012)

Chegada em São Miguel Arcanjo

Não comemos no X-panzé, em S.Miguel Arcanjo

Preparando almoço na casa da Ne

Fatício no quintalzão da Ne

Fábrica de chá verde

Fábrica de chá

Parada em Itararé-SP, só pra almoçar

PARANÁ

Divisa entre os estados de São Paulo e Paraná

Um dois muitos rios que cruzam as estradas do Paraná.

SENGÉS/PR

Fatício e Edes, da Secretaria de Esportes de Sengés-PR

Ginásio de esportes em Sengés-PR

Heron, grande cara, nos levando de carro pra conhecer a gruta da Barreira no seu intervalo de trabalho

GRUTA DA BARREIRA – SENGÉS/PR

Só a estrutura de uma antiga ponte pra o trem que trazia carga do Paraná pra Sorocaba-SP

Heron e Fatício estudando o mapa paranaense.

Ginásio de esportes em Sengés

Chão do vestiário masculino onde dormimos por 3 noites

CASTRO/PR

A ponte de Castro-PR, pequena cidade histórica de colonização holandesa

Mãe, estou bem, saudável, corado, usando capacete, e em Castro. Te amo, beijos

Um senhor de Castro e sua mulher, namorando na beira do rio em Castro. Ele nos chamou pra conversar, pagou um sorvete de nata pra cada um, e contou por quase uma hora coisas da vida.

PONTA GROSSA/PR

Calil, Eva e Cláudio, na nossa despedida, nos orientando como pegar a estrada de Ponta Grossa pra Prudentópolis-PR

Almoço na estrada: buffet livre por R$ 6,50 + tubaína de tutti frutti + Fatício em momento intrigante + Bob Esponja na tv ao fundo

 

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Castro e Ponta Grossa/PR – 12 e 13/2/2012 https://www.ushuaialaska.com.br/castro-e-ponta-grossapr-12-e-1322012/ https://www.ushuaialaska.com.br/castro-e-ponta-grossapr-12-e-1322012/#comments Tue, 14 Feb 2012 03:27:01 +0000 https://www.ushuaialaska.com.br/?p=228 Num trabalho espiritual que participei em Julho de 2011, depois dos transes muito loucos, eu comia uma banana sozinho num canto e do nada veio conversar comigo uma negra careca ossuda beiçuda, toda de branco e cheia de brinco e argola, ainda mais pra lá que pra cá. Perguntou meu nome, o que eu fazia, e afirmou que eu levava meus propósitos meio nas coxas. Eu disse que não, mas não insisti nisso que não sei o que dá discordar de oráculos. Ela me disse que Ele me amava e saiu por aí. Isso aconteceu umas duas semanas antes do Fatício me convidar pra fazer essa viagem.

Ontem comemoramos duas semanas levando a vida nas coxas! Mais magrelos que as magrelas, mas cada vez mais condicionados. Ao finito e além!

Chegar a uma cidade nova tem sido sempre um desafio para achar um restaurante bom e barato que sirva muita comida; assim como o desafio, maior, de achar um lugar para passarmos uma ou mais noites, com valor mínimo ou de graça (até hoje só pagamos uma noite num hotel, porque estive com febre) com alguma segurança pra nós e pras bicicletas e bagagens. Nosso repertório de estratégias inclui buscar a prefeitura (em particular as secretarias de esporte locais), igrejas, conventos, evangélicos, bombeiros, grupos de motoqueiros, Rotary club (nesse caso, seríamos filhos de sócios, mas esquecemos a carteirinha em casa). Se não conseguirmos nada disso, temos a barraca e podemos pensar em armá-la em casas vazias, cemitérios, estacionamentos, ou em terrenos nos limites da cidade. E, se não houver outra opção e montar a barraca nessas situações parecer nos oferecer algum risco, aí podemos pensar, talvez, quem sabe, com dor, pagar um hotel ou camping. Mesmo assim trazemos uma carteirinha de alberguista.

Mas se relembrarmos todas as pessoas ou lugares que até agora nos hospedaram, uma parte foram contatos (o que tende a diminuir muito quanto mais nos afastarmos de São Paulo e de nossos conhecidos), outra parte foram pessoas dos locais recém-chegados que se esforçaram pra nos abrigar de alguma forma, duas noites foram conseguidas em secretarias municipais de esporte e cultura (uma indiretamente, através do contato da Lurdes em Capão Bonito, outra diretamente com o secretário de Itapeva). Apenas ontem acessamos o couchsurfing.org , uma opção que consideramos muitíssimo, e que logo explicarei melhor.

Neste último sábado dormiríamos em Castro, cidade histórica de colonização holandesa. Logo ao chegar na cidade, buscando o centro pra achar algum movimento mas sem chances de encontrar prefeitura ou muito comércio aberto, um senhor veio nos perguntar de onde vínhamos. A conversa nem precisou durar tanto até que esse senhor, o Valdir, após uma ligação pro filho, já estivesse nos conduzindo para um estacionamento nos fundos de um boteco onde poderíamos montar a barraca e passar a noite.

S. Valdir, de Castro-PR

S. Valdir nos conduzindo até o estacionamento onde montaríamos a barraca pra passar a noite em Castro

No dia seguinte acordamos tarde, desmontamos a barraca, preparamos as bicicletas e partimos por volta das 13:00 em direção a Ponta Grossa (seriam só 40 km de estrada), a maior cidade por onde passamos desde a saída de São Paulo. Chegamos umas 16:00 do domingo com a perspectiva de que seria bastante difícil achar um lugar pra passar a noite.

Mas ontem a sorte definitivamente esteve do nosso lado. O fim de semana das cidades pequenas efetivamente é usado pra parar, é difícil achar comércio aberto, não há prefeituras funcionando, e menos pessoas nas ruas. Mesmo em Ponta Grossa, que é uma capital regional, um grande centro urbano paranaente, tivemos dificuldade pra achar um restaurante aberto na tarde de domingo.

Achamos um prato feito aberto e durante o almoço, ataquei o prato e o Fatício demorou uns 15 minutos pra começar a comer, ficava só fuçando a internet no celular dele. Como ele faz isso com bastante frequencia, pra acessar mapas, enviar mensagens, continuei comendo. No meio do almoço ele comentou que haviam 13 pessoas cadastradas no couchsurfing em Ponta Grossa, e que estava enviando solicitações de hospedagem. Ao fim do almoço, menos de meia hora após a solicitação, já tínhamos uma resposta positiva de alguém que morava a poucos quarteirões de onde almoçamos. Claro que comemoramos barcelonicamente, espartanamente.

O couchsurfing.org (couchsurfing, traduzido do inglês, significa literalmente “surf de sofá”) é um site que hospeda e agencia o perfil de pessoas cadastradas no site e interessadas em hospedar viajantes ou serem hospedadas gratuitamente por pessoas de outros lugares do mundo também cadastradas. Há formas de conferir credibilidade aos usuários, por meio de testemunhos de quem viajou ou recebeu viajantes sobre os usuários com quem se relacionaram. O Fatício já hospedou muita gente e já foi acolhido diversas vezes desde 2007, quando abriu seu cadastro no site. É quase um membro honorário. Eu não, nunca pude hospedar ninguém (apesar da vontade) e tive minha primeira acolhida (graças ao Fabrício) apenas ontem, pela Eva e o Cláudio, recém-cadastrados e cujos primeiros hospedados em sua casa fomos nós. E que maravilha tem sido! Estou escrevendo da casa deles agora mesmo, e combinamos desde o início que passaríamos duas noites e seguiríamos viagem.

Pitucho, o gato japonês, com sua refeição matinal: um pardal morto-matado. E laser nos olhos.

A Eva e o Cláudio se conheceram no Japão, onde moraram durante muitos anos, voltando para o Brasil no ano passado junto com o piá da Eva (seu filho Calil) e o gato Pitucho. Nenhum dos dois é natural de Ponta Grossa (ela é MT, ele é SP). Nos fizeram sentir extremamente à vontade na casa deles (que é também seu espaço de trabalho, com e-commerce), preparando refeições gostosíssimas (anoto aqui as anchovas pra lembrarmos no futuro), e conversando muito sobre Japão, economia, internet, tecnologia, gatos, um pouco de bicicleta, sempre com conhecimento e senso crítico. Sinto que preciso renovar a lingua portuguesa pra dar conta de agradecer algumas dessas pessoas que tem nos ajudado no caminho, os superlativos não bastam e são meio baba-ovo demais. Fora a identificação que temos tido com algumas dessas pessoas (tem sido o caso com o Cláudio e a Eva) que nos deixam saudosos antes mesmo de partirmos.

Fatício e Cláudio em Ponta Grossa-PR

Amanhã acordaremos as 5:50, tentaremos sair as 7:00 em direção a Prudentópolis, a quase 100 km de Ponta Grossa.

 

 

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Mais ou menos sobre os silêncios e o pensamento na estrada https://www.ushuaialaska.com.br/mais-ou-menos-sobre-os-silencios-e-o-pensamento-na-estrada/ https://www.ushuaialaska.com.br/mais-ou-menos-sobre-os-silencios-e-o-pensamento-na-estrada/#comments Tue, 14 Feb 2012 03:05:57 +0000 http://ushuaialaska.wordpress.com/?p=133

Todo ciclista de alguma forma já está acostumado a conviver com os próprios pensamentos. E vejo como lidar com os próprios pensamentos é e sempre foi uma questão complicada pra muita gente, até um tabu pra muitos grupos (ou qualquer pessoa que veja sua individualidade ameaçada ou castrada por tradições, contratos sociais ou de trabalho, idéias fixas). Minha tia Miriam do Rio de Janeiro, alguns meses antes de eu partir, me ligou aflita quando soube da viagem: “Meu filho, olha, você leu muitos livros, fez universidade, é artista, tem todo um universo interior. Eu sou uma mulher prática! Nem sei o que significa subjetividade. Eu conheço as coisas como elas são, não pela teoria. Converso com as pessoas, já vi muita coisa por aí. O mundo é perigoso, toma cuidado!”.

Bom, eu não diria que em quase 30 anos de vida não tive ainda nenhuma experiência prática (até já plantei feijãozinho no algodão, foi mágico!). Mas uma viagem de bicicleta como a que estamos fazendo é uma experiência intensíssima nos dois sentidos: na tal da vida prática, exterior, e na também tal da vida interior. Passam-se horas em silêncio, durante as pedaladas na estrada, e também depois. O próprio entendimento entre eu e o Fabrício, uma necessidade constante de equilíbrio mútuo, talvez aconteça mais durante os silêncios do que nas conversas. Uma viagem de biclicleta em grupo não garante altas conversas; quem vê o silêncio como algo incômodo, a ser evitado a todo custo, como sintoma daquele vazio que muitos querem longe, poderia ter aí um grande problema. E carregar na cabeça alguma questão pessoal mal resolvida, como uma frustração qualquer, um arrependimento, uma memória persistente, pode ver essa questão pesar mais e mais ao longo da viagem.

Durante os 6 meses que antecederam nossa partida, tentei ter clareza de que deveria sair de São Paulo sem nenhum vínculo que não fosse o estritamente afetivo, com minha família e amigos (essa foi uma resolução pessoal minha, não é uma exigência pra qualquer um que queira viajar um bom tempo de bike). Nenhum contrato, nenhuma questão pendente, nenhum rolo amoroso mal resolvido, quite com a vida e totalmente aberto para o que poderia vir a acontecer. E já na viagem, a impressão que tenho é que a cada dia devemos dormir quites, zerados com as questões do dia que está acabando. Não há nada mais urgente aqui do que o próprio momento em que se está, e as condições desse momento.

Pedalaremos uma média de 5 a 6 horas por dia, de 4 a 5 dias por semana, durante nossa viagem. Estamos descobrindo aos poucos uma certa dinâmica do corpo na estrada: na primeira hora em geral rendemos bem, e isso pode se estender pra segunda hora; da terceira em diante, dependendo da intensidade da pedalada já feita, o cansaço já aparece, e falta ainda algum tempo pro almoço (que de fato renova as energias, o ânimo e as pernas pra chegarmos ao destino do dia). Confesso que minha cabeça pensa num volume alto quase o tempo todo, e imagino que o Fatício, cabeçudo como é, também. Se nos momentos de cansaço na estrada somos assediados por pensamentos que nos puxam pra baixo, tem ficado claro como o rendimento da pedalada diminui, como também a atenção à estrada que deve ser constante. Nessa hora, ou convém ouvir uma música (se a estrada tiver um acostamento generoso e tráfego tranquilo), ou parar, ou comer paçoca, mascar algo que dure na boca, ou contar com o acaso que tem nos brindado com encontros quase sempre oportunos: gente que pára o carro pra conversar conosco, uma buzinadinhas camaradas que as vezes nos reconectam, um rio que cruza a estrada e paramos pra nadar, beber água de fontes, tirar foto, ou dar atenção pra um gavião pagando de gatão no meio da pista.

Parada nossa e do caminhão da empresa que faz asfalto no Rio Verde

Os dois cavaleiros que foram de cavalo do Paraná até o Santuário de Aparecida do Norte, e pararam pra conversar conosco na estrada e dar força

Tenho me lembrado bastante de uma frase do Deleuze (filósofo francês da segunda metade do século XX): ˜É preciso pensar com o que fortalece o pensamento, não com o que o debilita˜. Nem sempre isso é possível, mas fica como norte pra prática do pensamento, que vai ser tão constante e intenso pra nós quanto pedalar.

Pra evitar esboçar em mim um novo guru de auto-ajuda, queria começar o relato objetivo dos últimos dias de viagem, mas o Fatício já fez isso (falou de Sengés), então hoje só fiz filosofar mesmo. Só não queria deixar de agradecer ao povo de Sengés que conhecemos, e por quem guardarei muito carinho. E as moças de Piraí do Sul, que na conversa fizeram nossa digestão de feijoada ficar mais leve, beeeijo procêis.

Affonso

 

 

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São Miguel Arcanjo, Capão Bonito e Itapeva https://www.ushuaialaska.com.br/sao-miguel-arcanjo-capao-bonito-e-itapeva/ https://www.ushuaialaska.com.br/sao-miguel-arcanjo-capao-bonito-e-itapeva/#comments Fri, 10 Feb 2012 18:50:21 +0000 http://ushuaialaska.wordpress.com/?p=116

 DOENÇAS – Há alguns anos, numa época em que minha cabeça criava trocadilhos e brincava de pensar paradoxos quase todo dia, lembro que o Giovanni (amigo da época do curso de artes plásticas) veio com essa: “Li na internet que existe uma doença relacionada a quem cria mais de 3 ou 4 trocadilhos por dia”. Beleza, então eu era doente, tava sabendo desde aquele momento, e fiquei até feliz em saber da doença.

Tô contando isso pra introduzir um desses paradoxos que desenterrei da memória durante os dias em São Miguel Arcanjo, onde acabamos ficando  5 dias por conta de vários problemas de saúde que tive e fizeram a gente parar. Se eu penso: “A sorte tem muito azar” e na sequência: “O azar tem muita sorte”, ao fim me dá a impressão que o azar leva uma pequena vantagem. Mas isso é só um jogo de linguagem.

O fato é que ficaríamos só uma noite em São Miguel, na casa da Ne, mãe de uma ex-colega de trabalho. Na manhã seguinte à nossa chegada, ao acordar e pensando já em sair, uma dor entre a cintura e a coxa da minha perna direita que já existia desde Pilar do Sul mas não chegou a comprometer nada, se impôs e me fez mancar o dia todo. Adiamos então nossa partida. Fui ao posto médico e me disseram que estava com tendinite, uma inflamação do tendão. Recomendaram uma semana de repouso, injeção no bumbum e uns remédios anti-inflamatórios (não tomo remédios há anos, mas tomei).

Ficamos mais uma noite na Ne, e já no dia seguinte, além da dor da tendinite, acordei com o pulmão arranhando por causa de uma crise de asma súbita, e dez minutos sob o sol causaram uma reação alérgica horrorosa na pele do corpo todo que só está começando a melhorar agora, após quase uma semana do primeiro diagnóstico. Tanto a asma quanto a reação alérgica ao sol foram reações colaterais ao remédio anti-inflamatório. Até uma médica, a quarta que consultei durante essa saga da tendinite (na verdade, foi uma bursite) me disse: “Menino, que azar..”

O último episódio das doenças (espero eu) foi o da minha bicicleta; afinal, numa viagem como a nossa, o ciclista e a bicicleta são uma coisa só, e não duvido que os problemas com a minha corrente, além de terem me obrigado a gastar muito mais energia nas pedaladas do que eu deveria, foram parte da causa da minha bursite. No terceiro dia em São Miguel, levei a bicicleta pro Magrão, um mecânico local, dar uma avaliada. Ele resolveu a questão: a corrente que eu estava usando era pra um câmbio de 21 marchas, e eu estou usando 27 marchas. Isso explicava muita coisa, e o que mais me intrigava foi como que esse detalhe crucial passou despercebido por mim e pelo Fabrício na hora da compra da corrente, pelo mecânico que montou minha bicicleta em São Paulo (desatenção ou negligência), e também pelo Airton (o mecânico paraplégico de Pilar do Sul).  Comprei uma corrente nova e pela primeira vez senti como pedalar naquela bicicleta deveria ser desde o início; a diferença na pedalada, na troca das marchas, no esforço, eram brutais. Se nos primeiros dias de viagem cheguei a pensar (até escrevi aqui no post) que algum sofrimento faz parte da viagem, hoje eu diria de outra forma: há sim muito esforço, mas se há sofrimento há algum problema. Mesmo as inúmeras subidas, que nos primeiros dias me faziam pensar no Sísifo o tempo todo (Sísifo é aquela figura mitológica condenada a carregar uma pedra montanha acima pela eternidade), hoje, com a bicicleta redondinha, e mesmo com quase 30 quilos de bagagem, são só uma questão de paciência e perseverança.

HÉLIO E VANDA de SÃO MIGUEL ARCANJO – Logo ao chegarmos em São Miguel, antes mesmo de chegarmos na casa da Ne, fomos abordados na rua por um ciclista muito simpático e todo equipado: “Opa, cicloturistas! Vindos de onde?”. Era o Hélio, que trabalha numa loja de conveniências/padaria em São Miguel com a mulher Vanda, e organiza viagens de bicicleta com um pequeno grupo de ciclistas de São Miguel. O Hélio fez questão de nos mostrar os roteiros ciclísticos que já realizaram, apresentar o grupo de mulheres ciclistas de São Miguel (7 ou 8 mulheres, incluindo a Vanda), e de nos dar todo tipo de assistência durante nossa estadia: nos levou até a casa da Ne, me levou até o posto de saúde, ofereceu café da manhã, sugeriu o mecânico pra bicicleta. Essa figuras, que aparecem do nada e tem sido até constantes na nossa viagem, não dão chances pro azar levar vantagem.

SEU BENEDITO/D. ANA/EVANDRO de S.Miguel ARCANJO – Após quatro noites dormindo na Ne, muito mais do que o previsto inicialmente, conseguimos uma nova hospedagem em São Miguel para passarmos a última noite antes de retomarmos a viagem rumo a Capão Bonito. E foi num lugar intrigante: o contato eram os pais do Éder, amigo de amigos meus da Usp. No telefone, a dona Ana e o Seu Benedito nos orientavam para que fossemos pra perto da fábrica de chá. Fomos e ficamos rodando ao redor da fábrica, até descobrirmos que ele moravam dentro mesmo do terreno da fábrica da Yamamotoyama, a mesma marca de chá verde e ban-chá que costumo tomar no dia-a-dia em São Paulo. Era domingo e a fábrica não estava funcionando; o Seu Benedito era o administrador da fábrica, bebia diariamente o chá pra avaliar se a qualidade e o sabor estavam de acordo com os padrões da marca. Foram extremamente gentis conosco, nos deram almoço, jantar, café da manhã, atenção e um quarto pra dormir.

A IMAGEM DO CICLO-VIAJANTE E DO CICLISTA – Nos dias de repouso em São Miguel pudemos reparar na enorme diferença  de abordagem das pessoas locais  em relação a nós quando estamos com a bicicleta carregada com as bagagens (alforjes, barraca, sacos de dormir, etc), e quando estamos pedalando descarregados. Como disse o Fatício, há algo de performático na figura do ciclo-viajante, e que inspira imediatamente qualquer pessoa a se perguntar (ou a nos perguntar): “Vem de onde?”, “Vão pra onde?”, “Precisam de ajuda?”, “Tão pagando promessa?”. E outras: “Ai, que dor nas perna!”, “Que coragem!”, “Soorte procêis!”. A comunicação com praticamente qualquer pessoa é imediata, não parece haver qualquer julgamento em relação à nossa condição social.  Mas se estamos pedalando sem as bagagens, paradoxalmente me sinto mais vulnerável: nos tornamos de certa forma alvo de olhares que ou censuram, ou invejam, pois de repente somos os caras com as bike boa, da hora, toda incrementada. Nas estradas os caminhoneiros dão então menos atenção a nós, e isso é sempre um grande risco. E, de modo geral, toda pergunta quanto a nossa origem ou destino cessa nas pessoas com quem cruzamos, deixamos de ser viajantes.

RETORNO À ESTRADA, RUMO A CAPÃO BONITO – Após os 5 dias parados em S. Miguel, retornamos à estrada em direção a Capão Bonito. Não sei se pela enorme vontade de voltar pra estrada, ou pelo vento da manhãzinha que é sempre bom, ou por que finalmente minha bicicleta estava rodando como deveria, todo o caminho até Capão Bonito foi uma delícia de ser percorrido, muito leve pra mim. Chegamos em Capão Bonito ao meio-dia, almoçamos na praça central, e em seguida fomos buscar uma bicicletaria pra tentar arranjar um pézinho/descanso pra bicicleta do Fatício. A dona da bicicletaria era a Lurdes, mais uma dessas figuras partidárias da nossa sorte. Enquanto o Fatício resolvia com o mecânico as questões da bicicleta dele, eu conversava com a Lurdes e a Dani (filha, que também atende na loja) sobre nossa viagem, até que perguntei sobre um lugar baratinho pra passarmos a noite. “Humm, deixa ver.. Tem aquela pensãozinha aqui atrás. Devem cobrar uns 20 reais.” Comentei que 20 era muito pra nós, que não fazíamos questão de conforto e só passaríamos aquela noite na cidade, partindo na manhã seguinte. A Dani comentou com a mãe: “Imagina mãe, se eles forem gastar 20 reais todo dia até chegar no Canadá, aí eles tão lascado”. Daí ligou um motorzinho interno na Lurdes, que pegou o telefone e ligou pro Secretário de Esportes e Cultura de Capão Bonito. Em poucos minutos de ligação, ela nos arranjou um contato com o Secretário, uma reportagem no jornal local, um quarto de hotel pra dormirmos (com café da manhã incluso), e à noite nos preparou uma janta ótima.

ITAPEVA – Acordamos 5:30 no Hotel Regina em Capão Bonito, fizemos a consagração do estômago no café da manhã bem servido do hotel, e partimos umas 6:30 rumo a Itapeva. O cenário ao longo das estradas é quase sempre o mesmo: quilômetros e mais quilômetros de plantações de eucalipto ou pinho, soja, e eventualmente milho. Os grãos, sempre transgênicos, e o eucalipto e pinho sempre pra corte. Quase não havia mata nativa nas laterais das estradas. Faltando alguns quilômetros até chegarmos em Itapeva, paramos em Itararé pra almoçarmos, e seguimos adiante. Chegando em Itapeva umas 14:00, fomos direto procurar a Secretaria de Esportes local, pra buscar apoio. Não vou negar que mais uma vez conseguimos hospedagem, mas foi osso: esperamos quase duas horas o Secretário de Esportes local chegar, mais meia hora até ele nos chamar na sala dele, fazer todo um discurso politiqueiro, sobre as glórias do time de futsal de Itapeva, e pra falarmos deles nas próximas cidades, etc. Acabamos sabendo que poderíamos dormir numa casa cedida ao time de futsal da cidade, mas para isso tivemos que esperar mais quase uma hora até o secretário liberar o Luís (técnico do time de futsal) da sala dele pra que nos mostrasse o caminho até a casa. Chegando lá, uma casa mais ou menos sucateada, inteira cheirando a mijo, um banheiro que não era limpo há muito tempo, mas que ainda assim serviria pra passarmos a noite.

Mais informações, aguarde o próximo versículo…

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Pilar do Sul, insolação, brilhos no olhar e umas reflexões soltas https://www.ushuaialaska.com.br/pilar-do-sul-insolacao-brilhos-no-olhar-e-umas-reflexoes-soltas/ https://www.ushuaialaska.com.br/pilar-do-sul-insolacao-brilhos-no-olhar-e-umas-reflexoes-soltas/#comments Wed, 01 Feb 2012 02:26:07 +0000 http://ushuaialaska.wordpress.com/?p=86

Poucas semanas antes de partirmos pra viagem, num dos encontros que tivemos com o Arthur Simões (amigo ciclista que realizou uma volta ao mundo: http://pedalnaestrada.com.br/), a Juli, namorada do Fatício, reparou sobre ele: “O olho brilha. Parece que tá vivo o tempo todo˜.

Nào é minha intenção idealizar a viagem de bicicleta: há muito esforço, as vezes (ou muitas vezes) sofrimento mesmo. Uma das primeiras características desse tipo de viagem que reparamos após só 2 dias de pedaladas é que aproximadamente 70% do tempo da viagem (na estrada) será gasto em subidas.

Que isso não desencoraje ninguém a fazer uma viagem dessas. Nesses primeiros dias, talvez a experiencia mais intensa que tivemos foi comer e beber água (e intensidade é a palavra pra essa viagem, pro bem ou pro mal). Poucas vezes um gole de água foi tão cheio de sabor; pela maçã que comemos na estrada eu largava o paraíso fácil fácil; e a banana que rachamos, apesar de eu ser mó hetero, nunca entrou tão bem no meu corpo (perdão…).

Há uma revalorização de quase tudo, e ganha mais valor o que é pra nós o essencial: água, comida, as bicicletas, o Fabrício pra mim (e talvez eu pra ele), a bagagem e equipamentos, os lugares, as pessoas e nossa relação com elas. E, claro, as breves mensagens que trocamos com nossa família e amigos são sempre fortes emoções, nível aguenta-coração.

Hoje o Fatício enviou por mim pelo correio quase 6 quilos de coisas que me pareceram menos necessárias, pela urgencia de diminuir o peso excessivo da bicicleta: um xilifone infantil pra arrasar no Caribe, três livros, umas bugigangas, e o que me pareceu mais sintomático: as chaves de casa. Da tríade de ferro que acompanha o corpo de todo morador de uma cidade (chaves, carteira com documentos e grana, e o recente celular, que grudou e não larga mais), superei as chaves, e até o celular já tá mais ou menos condenado.

180 km de pedaladas em dois dias, após semanas de correrias em São Paulo por bancos, bicicletarias, hospitais para vacinas, lojas, entrega da casa alugada (um stress violento), e horas, horas de pequisa na internet, é claro que o choque viria. Na noite de ontem, após um banho de água morna, troquei o chuveiro pra “inverno” e deixei a água bem quente cair nas pernas pra aliviar a fadiga muscular. Foi ótimo, fiquei até orgulhoso que eu já sabia de algum jeito me cuidar sozinho. Não durou meia hora e a temperatura do corpo subiu absurdamente. Fui dormir ardendo em febre, e acordei no terceiro dia com 39,5 C de febre. Tivemos que tirar o terceiro dia pra repouso (por isso tá dando pra escrever esse texto). Eu já havia tido uma leve insolação na primeira noite, que não me impediu de nada.

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Provavelmente, se não fosse pela ajuda do José Eduardo Paes, que cruzou de carro conosco na estrada entre Piedade e Pilar do Sul, e em Pilar nos reencontramos e ele fez questão de pagar espetinhos de frango, refrescos, e uma noite num hotel da cidade, eu estaria num perrengue grande por conta da insolação súbita. Queria agradecer o Eduardo aqui: seu gesto é do tamanho da nossa gratidão, obrigado mesmo.

O viajante de bicicleta em geral inspira a solidariedade das pessoas, talvez até mais do que um caminhante, que pode inspirar medo ou receio de que seja um louco, perdido. Tem sido comum encontrarmos pessoas dispostas a nos ajudar, ou que param pra conversar, perguntar pra onde vamos, de onde estamos vindo. E é provável que a frase mais constante que falaremos ao longo da viagem para as pessoas que encontrarmos será: “voce pode me dar um pouco de água?”. Pra mim, não existe pedido mais “humano” que este, e as grandes cidades (claro que penso em São Paulo) inspiram as pessoas a negarem esse pedido; negar água é ao mesmo tempo a expressão mínima e máxima da maldade com o outro. Espero não passarmos por isso.

Então o que faria o olho do Arthur brilhar com tanta intensidade, e que também pude perceber no olhar de duas outras pessoas que rodaram o mundo de bike, o Argus e o Antonio Olinto? Vou chutar: saúde talvez (física, mental, espiritual); ou porque a atenção deve estar alerta a cada instante, à altura do momento, e isso lhes deu a qualidade de uma “presença no presente” pouco comum; ou porque o viajante de bicicleta não é um ser totalmente autônomo, depende ainda muito de outras pessoas pra continuar, e após anos de viagem esses olhares carregam esse reconhecimento; ou porque praticamente todas as escolhas deles durante anos foram definidas por eles mesmos, o que me faz supor que nos momentos em que nos encontramos com o Arthur, o Argus ou o Olinto, eles estavam lá porque queriam estar. Posso ficar supondo por horas sobre os motivos dos olhares deles serem desse jeito, mas o resumo é que, mesmo com todo o cansaço de uma viagem dessas, a escolha deles (e agora também nossa) pelas nossas liberdade e vontade, e acima de tudo, pra viver o que se espera da própria vida, devem mesmo revalorizar o olhar, que, dizem, é a janela da alma.

Hoje, por conta da febre, meu olhar tá murcho e cinza. Tentarei melhorar.

Affonso

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