{"id":351,"date":"2012-03-01T18:54:00","date_gmt":"2012-03-01T21:54:00","guid":{"rendered":"https:\/\/www.ushuaialaska.com.br\/?p=351"},"modified":"2012-03-01T19:30:44","modified_gmt":"2012-03-01T22:30:44","slug":"ainda-sobre-sao-miguel-arcanjo-zizo-e-resistencia","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.ushuaialaska.com.br\/ainda-sobre-sao-miguel-arcanjo-zizo-e-resistencia\/","title":{"rendered":"Ainda sobre S\u00e3o Miguel Arcanjo, Zizo e Resist\u00eancia."},"content":{"rendered":"

Quando estive em S\u00e3o Miguel Arcanjo, na casa da N\u00ea Balboni, tentei publicar esse texto numa revista de S\u00e3o Paulo. Acabou n\u00e3o rolando, ent\u00e3o publico aqui, com um pouco mais de riqueza de detalhes que o texto original. Fotos de arquivo, minha e da Jurema.<\/em><\/p>\n

Matias e Abaet\u00e9<\/h4>\n

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O ano \u00e9 1969. Matias, 24 anos, acordou para mais um dia de muito trabalho. As semanas anteriores haviam sido pesadas, verificando cada detalhe da a\u00e7\u00e3o e definindo, t\u00e3o cifradamente quanto poss\u00edvel, o grupo m\u00ednimo necess\u00e1rio. O banco ficava na avenida Paulista, seu grupo n\u00e3o estava muito longe dali, e a pol\u00edcia estava cada vez mais atenta a esse tipo crime. Na sua cabe\u00e7a, a certeza de que aquela seria uma entre poucas a\u00e7\u00f5es que dariam a base necess\u00e1ria para a retaguarda do\u00a0comando. Matias lembrava de S\u00e3o Miguel Arcanjo, onde nascera, e onde sua fam\u00edlia guardava uma boa quantidade de terras. Lembrava do sert\u00e3o de sua cidade, onde cogitava treinar um grupo que fizesse seu papel hist\u00f3rico naquele canto do estado. Na m\u00e3o, um rev\u00f3lver que mais\u00a0estalava do que atirava. Na a\u00e7\u00e3o, nem todos os apelidos eram conhecidos, nem ele pr\u00f3prio os queria saber. Junto dele, estava Manoel – n\u00e3o o apelido, mas o nome – que ser\u00e1 importante testemunha da a\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

O ano \u00e9 2012. Abaet\u00e9, 27 anos, acordou tarde, de uma noite com algum vinho e toda sorte de acepipes naturais: cevada, feij\u00e3o, pepino, bolo de mandioca e ovos. No caf\u00e9, frutas, um viol\u00e3o, p\u00e3o caseiro,\u00a0sucos. Muitas pessoas no s\u00edtio UOAEI. Nomes de \u00edndios entre todos os amigos: Ungar\u00e1, Jacira, Jurema, Itaberaba\u2026 Preparam-se pra uma expedi\u00e7\u00e3o ao Parque do Zizo, reserva particular de Mata Atl\u00e2ntica da fam\u00edlia de Abaet\u00e9, situada em S\u00e3o Miguel Arcanjo, parte da mata remanescente onde tamb\u00e9m se encontra no Parque Estadual Carlos Botelho. Uma noite ao lado da segunda (ou seria a terceira?) maior cachoeira do estado de S\u00e3o Paulo. 5 pessoas num fusca at\u00e9 a entrada, mais 5 kil\u00f4metros de caminhada mata a dentro. Chega uma bicicleta e, em cima dela, Manariru.<\/p>\n

Na sa\u00edda, Matias n\u00e3o est\u00e1 t\u00e3o tenso quanto esperava. Sua primeira a\u00e7\u00e3o poderia ser a \u00fanica, dependendo dos des\u00edgnios da ALN (Alian\u00e7a Libertadora Nacional). Ele sabia que por nada deixaria de fazer o curso de arquitetura e que tudo que havia aprendido na engenharia daquela universidade murada seria \u00fatil de alguma forma, at\u00e9 que pudesse seguir o que sentia ser seu talento verdadeiro. At\u00e9 l\u00e1, as armas foram sua escolha para combater um inimigo real, concreto, que parecia estar em todo lugar, no olhar dos civis que os apoiavam, nas batidas em que se cobrava a carteira de trabalho, na ostensiva repress\u00e3o a tudo que fosse distinto das r\u00edgidas, e tantas vezes sem\u00a0sentido, determina\u00e7\u00f5es militares. O fusca seguia na dire\u00e7\u00e3o do banco escolhido, mas o barulho de sirene faria todos sa\u00edrem do carro para se proteger. Do carro da pol\u00edcia, grita S\u00e9rgio Fleury, que j\u00e1 os patrulhava h\u00e1 mais de tr\u00eas dias e os seguia desde que Matias entrara no carro.<\/p>\n

Abaet\u00e9 pergunta se Manariru tem experi\u00eancia com acampamentos, se tem disposi\u00e7\u00e3o f\u00edsica para passar uma noite desconfort\u00e1vel. Explica que a experi\u00eancia ser\u00e1 de muito sil\u00eancio, introspe\u00e7\u00e3o. O dono da\u00a0bicicleta n\u00e3o titubeia em dizer que est\u00e1 preparado, que quer se juntar ao grupo e que talvez fa\u00e7a um relato para a revista da capital sobre a experi\u00eancia. Abaet\u00e9 ent\u00e3o lhe empresta um saco de dormir e uma blusa. A bicicleta vai na frente, o fusca parte depois de 15 minutos. S\u00e3o 12\u00a0kil\u00f4metros at\u00e9 a entrada do Parque do Zizo, que est\u00e1 fechada (a chave ficou com o tio Chico, que n\u00e3o estava na cidade). Todos, do fusca e da bicicleta, se reencontram e juntos pulam o port\u00e3o do parque, confiantes na experi\u00eancia de Abaet\u00e9 e na certeza de que aquela \u00e9 uma reserva particular e que um dos herdeiros liderava o grupo.<\/p>\n

Ouvem-se muitos disparos. Um deles, de fuzil, acerta Matias, mas ningu\u00e9m p\u00f4de saber onde, porque o caix\u00e3o de zinco com seu corpo chega lacrado. Agonizante, Matias \u00e9 resgatado e jogado no carro da pol\u00edcia como indigente. Levado at\u00e9 o DOPS, j\u00e1 n\u00e3o pensava mais na inf\u00e2ncia, nem na arquitetura, muito menos em S\u00e3o Miguel Arcanjo. Sabia que havia a quem proteger, que n\u00e3o lhe dariam tratamento e, \u00e0quela altura, s\u00f3 queria algum fiapo de esperan\u00e7a em que acreditar para sobreviver. Mas se a perda de sua vida fosse necess\u00e1ria para poupar outras, estava disposto a entreg\u00e1-la, mesmo que achasse essa a situa\u00e7\u00e3o mais injusta que poderia conceber. No DOPS, a primeira hora de sangramento foi infinita. Colocado em uma posi\u00e7\u00e3o em que podia ver o pr\u00f3prio sangue, pediam-lhe nomes do grupo e ele n\u00e3o os sabia. Perguntavam de pessoas que ele n\u00e3o via h\u00e1 anos e apanhava ao negar cada pergunta.<\/p>\n

Nos primeiros passos, o grupo descobre que esqueceu a comida. Somam-se os v\u00edveres e temos um caixo de uvas, um saco de castanhas do par\u00e1, um p\u00e3o grande e tr\u00eas cenouras para 6 pessoas e tr\u00eas refei\u00e7\u00f5es. Tudo \u00e9 racionado e o que era sil\u00eancio de instrope\u00e7\u00e3o, vai se tornando sil\u00eancio de quem guarda energia. A natureza completa o banquete com bananas verdes. Todas as rela\u00e7\u00f5es s\u00e3o ritualizadas. Para come\u00e7ar a caminhada, d\u00e1-se as m\u00e3os em roda. Para acender a fogueira, d\u00e1-se as
\nm\u00e3o em roda. Para ir para a cachoeira, todos devem dizer sim. Frente ao imenso jorro de \u00e1gua, distribu\u00eddo em diversas quedas, o grupo n\u00e3o se cont\u00e9m nos gritos de alegria. Tiram as roupas, nadam, dormem ao Sol, fotografam-se, banham-se e d\u00e3o-se as m\u00e3os, em roda.<\/p>\n

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Duas horas depois, Matias entra numa esp\u00e9cie de nirvana. Seu pensamento persiste, embora seu corpo j\u00e1 n\u00e3o responda a mais nada. Rubens Tucunduva, delegado que o interrogava, j\u00e1 tinha desistido de\u00a0jogar-lhe \u00e1gua fria e pede ao cabo que desse um banho no corpo e que o levasse ao Hospital das Cl\u00ednicas. Matias ouve toda a conversa e pensa que chegou o momento de sobreviver, de talvez ir para Cuba, mas antes passar em S\u00e3o Miguel, abra\u00e7ar a m\u00e3e e os irm\u00e3os, explicar por que n\u00e3o entrou em contato nos \u00faltimos dois anos, dizer que era arquitetura (j\u00e1 sabia!), que tinha tido amores e que teria outros, que n\u00e3o gostava do cheiro de p\u00f3lvora, que n\u00e3o vendessem as terras, que queria ouvir os muriquis mais uma vez, que o Lamarca era mesmo aquilo que imaginavam, que esperassem um pouco mais e estivessem prontos porque o mundo n\u00e3o podia ficar daquele jeito pra sempre. N\u00e3o precisava mais da arma que n\u00e3o atirava direito. Nunca quis matar. Nunca quis morrer.<\/p>\n

\u00c0 noite, fogueira alta, e um grande ritual de ben\u00e7\u00e3o de objetos pela natureza. Cortam-se folhas de bananeiras, arma-se uma rede e todos encontram seu lugar. Abaet\u00e9 sabe que aquilo \u00e9 um o\u00e1sis, mas que n\u00e3o \u00e9 mantido com pouco esfor\u00e7o. Tem a certeza de que a pr\u00f3pria ocupa\u00e7\u00e3o da \u00e1rea j\u00e1 era uma posi\u00e7\u00e3o pol\u00edtica. No dia seguinte, mais um banho em nova cachoeira, mais m\u00e3os dadas em roda, fotos e a \u00faltima refei\u00e7\u00e3o: 3 uvas, 4 castanhas do par\u00e1, 5 peda\u00e7os pequenos de cenoura, algumas bananas verdes cozidas e 50 gramas de p\u00e3o por pessoa. Todos sabem que dormiram mal, que comeram pouco, mas ningu\u00e9m reclama.<\/p>\n

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Os legistas Ant\u00f4nio e Irany recebem o corpo de Matias, que fora encaminhado ao Hospital das Cl\u00ednicas j\u00e1 desfalecido e que est\u00e1 sob a responsabilidade do IML. Causa mortis: tiro de fuzil. Havia, no entanto, outras escolia\u00e7\u00f5es, que Ant\u00f4nio advertiu Irany para que n\u00e3o descrevesse, porque n\u00e3o teriam causado a morte. Na ficha, mais informa\u00e7\u00f5es sobre sua vida do que Matias jamais teria pensado. J\u00e1 tinham seu nome, sua cidade natal, os nomes dos integrantes de sua fam\u00edlia e agora adicionavam o dia em que expirou. Lacrado o caix\u00e3o de zinco, sua m\u00e3e o recebe em S\u00e3o Miguel Arcanjo. O soldado se comisera da m\u00e3e que chora, mas n\u00e3o deixa de cumprir a ordem de avisar que\u00a0aquele era um ladr\u00e3o, que fora morto como um meliante porque mereceu, que assaltava bancos e que representava um perigo. Diz que n\u00e3o acredita que a m\u00e3e o havia educado assim, mas que n\u00e3o pode fazer nada se o indiv\u00edduo \u00e9 ladr\u00e3o.<\/p>\n

Na volta, os 5 kil\u00f4metros finais parecem ter dobrado de tamanho. Os roncos dos est\u00f4magos faziam um coro mais alto do que os 600 muriquis remanescentes no parque. Abaet\u00e9 chega ao port\u00e3o trancado que\u00a0haviam pulado. Antes de sair, pede que Manariru encha o cantil de alum\u00ednio que carregava. O companheiro de guerra o completa, mas n\u00e3o consegue fechar a tampa. Abaet\u00e9 pergunta se Manariru sabe quem foi Lamarca. Abaet\u00e9 explica que aquele fora o cantil de Lamarca, quando ele ainda fazia parte do Ex\u00e9rcito Brasileiro. Lamarca passou naquele mesmo parque fazendo uma das \u00faltimas patrulhas com seu batalh\u00e3o, antes de desertar com a Kombi lotada de fuzis armados leves. Deixara o cantil ao av\u00f4 de Abaet\u00e9, que era guarda florestal. Do av\u00f4 ao tio, que partiu aos Estados Unidos, e deste para Abaet\u00e9, que o mantinha at\u00e9 hoje.<\/p>\n

Somente em 1996, Matias ser\u00e1 reconhecido como um dos assassinados pela ditadura militar brasileira. Seu nome, Luiz Foga\u00e7a Balboni, passa a figurar na p\u00e1gina 70 do Livro dos Mortos e Desaparecidos pol\u00edticos a partir de 1964. Em 1997, ou 28 anos depois da morte, Manoel Cyrillo, que estava na a\u00e7\u00e3o, encontra a fam\u00edlia do companheiro de luta e explica a que horas tudo aconteceu. Os elos v\u00e3o se fechando e fica evidente que o rapaz fora torturado antes de morrer. Em fevereiro de 1998, a fam\u00edlia recebe 120 mil reais, segundo relatos no site do Parque do Zizo (ou seriam 250 mil d\u00f3lares, nas palavras de Abaet\u00e9), como indeniza\u00e7\u00e3o pela morte do filho. Em 1999, um vereador de Itapetininga prop\u00f5e que uma rua ganhe o nome de Luiz Foga\u00e7a Balboni. No mesmo ano, a fam\u00edlia dele decide utilizar o valor da indeniza\u00e7\u00e3o numa reserva conservada de Mata Atl\u00e2ntica em S\u00e3o Miguel Arcanjo – \u00e9\u00a0criado o Parque do Zizo (apelido de Luiz Foga\u00e7a Balboni). Em 2011, \u00e9 criado o s\u00edtio UOAEI, mantido por Rafael Vasconcelos Balboni, o Abaet\u00e9, onde s\u00e3o desenvolvidos projetos de agricultura sustent\u00e1vel e defesa do Parque do Zizo.<\/p>\n

Abaet\u00e9 diz que \u00e9 de paz, mas j\u00e1 teve que tirar peixeira pra proteger o parque contra palmiteiros. Relata que a quest\u00e3o fundi\u00e1ria e a grilagem continuam sendo constantes na regi\u00e3o, mesmo com a cria\u00e7\u00e3o do Parque do Zizo e com o Parque Estadual Carlos Botelho. Revolta-se contra a ignor\u00e2ncia de quem n\u00e3o entende que uma \u00e1rvore de palmito demora 12 anos para estar no ponto de colheita. N\u00e3o se conforma que as pessoas n\u00e3o preocupem que os macacos Muriqui, os maiores da Am\u00e9rica Latina, estejam em extin\u00e7\u00e3o e que aquela \u00e1rea, onde residem, n\u00e3o seja devidamente conservada pelo Estado. Um jovem de 27 anos escolhe o caminho da aproxima\u00e7\u00e3o do parque e isolamento da cidade, onde toca seus projetos e viv\u00eancias ligados \u00e0 natureza. Ao fim de seu desabafo e atento ao cantil que carregava na mochila, emenda: a luta continua, companheiro.<\/p>\n

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