{"id":448,"date":"2012-03-17T18:11:43","date_gmt":"2012-03-17T21:11:43","guid":{"rendered":"https:\/\/www.ushuaialaska.com.br\/?p=448"},"modified":"2012-03-17T22:36:41","modified_gmt":"2012-03-18T01:36:41","slug":"paraguai-parte-1","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.ushuaialaska.com.br\/paraguai-parte-1\/","title":{"rendered":"Paraguai – parte 1"},"content":{"rendered":"

Tentando relembrar o que foram as \u00faltimas duas semanas, tudo se embaralha. Estradas, pa\u00edses, fronteiras, pessoas, nomes, locais onde dormimos, comidas, mates e terer\u00e9s… O registro cont\u00ednuo se faz obrigat\u00f3rio porque o ac\u00famulo \u00e9 certo depois de poucos dias.<\/p>\n

Meu atraso n\u00e3o pode ser justificado, mas ao menos pode ser compreendido por conta do pau que meu computador teve. Como sei que alguns cicloviajantes e pessoas que querem colocar o p\u00e9 na estrada acompanham esse blogue, vale dizer que planejei levar meu computador antigo, que tem garantia estendida de 3 anos. At\u00e9 aqui, tudo certo que ele tenha dado pau. Vamos ver o que a garantia me conta quando chegarmos em Buenos Aires.<\/p>\n

Escrevo hoje da pequena cidade de Itaqui<\/a>, que fica entre S\u00e3o Borja e Uruguaiana, todas as tr\u00eas \u00e0s margens do Rio Uruguai. Extremo sudoeste do Brasil e fronteira com a Prov\u00edncia de Corrientes, na Argentina. Acho que o \u00faltimo registro mais preciso que fizemos foi em Asunci\u00f3n<\/a>, ainda abalados com a morte da Julie Dias<\/a>.<\/p>\n

Antes de l\u00e1, hav\u00edamos cruzado o Paraguai em tr\u00eas dias, entrando por Ciudad Del Este, posando em Campo Nueve<\/a>, San Jose Del Arroyo<\/a> e terminando em Asunci\u00f3n<\/a>. Nesta \u00faltima, fomos recebidos pelo Giulio Andreotti<\/a>, m\u00fasico e morador de Asunci\u00f3n, que faz parte do Couchsurfing<\/a>. Ficamos em sua casa por tr\u00eas dias e sa\u00edmos em dire\u00e7\u00e3o a Encarnaci\u00f3n<\/a>, no extremo sudeste do Paraguai. No caminho, posamos em Quiindy<\/a>, San Juan Bautista<\/a>, entramos em San Ignacio, posamos tamb\u00e9m em Santa Rosa<\/a> e duas noites em San Cosme y Dami\u00e1n<\/a>, para enfim chegar a Encarnaci\u00f3n<\/a>.<\/p>\n

Este trajeto nos interessava para poder conhecer minimamente o Paraguai, pa\u00eds por onde poucos brasileiros viajam e por onde ainda menos cicloviajantes se arriscam. A \u00faltima palavra foi escolhida porque nossa imagem do Paraguai nos sugere que viajar por l\u00e1 \u00e9 um risco. Depois de cruzar o pa\u00eds e coltar, n\u00e3o direi o contr\u00e1rio, mas devo dizer que o risco \u00e9 bem menor do que imagin\u00e1vamos. J\u00e1 nos primeiros dias, ficamos realmente surpresos (pra n\u00e3o dizer chocados), ao ver meninos de 13 ou 14 anos andando de moto. Nem vou dizer que estavam sem capacete, porque os adultos tamb\u00e9m n\u00e3o o usam, com exce\u00e7\u00e3o de Asunci\u00f3n e Ciudad Del Este. As motos s\u00e3o extremamente populares no interior do Paraguai, sendo os motoqueiros os que ocupam a posi\u00e7\u00e3o de \u201coprimidos\u201d. Posi\u00e7\u00e3o que costumeiramente n\u00f3s ciclistas ocupamos em cidades onde as bikes come\u00e7am a aparecer. Por incr\u00edvel que pare\u00e7a, o caos geral causado pela quantidade e os m\u00faltiplos usos feitos da moto faz com que a m\u00e9dia de velocidade seja mais baixa e tamb\u00e9m com que as motos estejam quase sempre no acostamento. Como cruzamos todo o Paraguai usando os acostamentos, era comum ser ultrapassado por uma delas numa daquelas finas que normalmente levamos de carros. A boa nova \u00e9 que, se ca\u00edssemos, o acidente provavelmente n\u00e3o seria fatal. Nada aconteceu, mesmo com pessoas circulando pelos acostamentos, motos vindo na contram\u00e3o, motos com fam\u00edlias inteiras (vi at\u00e9 com 4 pessoas) e motos pilotadas por crian\u00e7as. Parece, de novo, que o caos do tr\u00e2nsito de l\u00e1 obriga as pessoas a irem mais devagar e tomarem mais cuidado.<\/p>\n

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Tipo de imagem corriqueira na Ruta 2 Fonte: http:\/\/www.abc.com.py\/nota\/asi-se-maneja-por-ruta-2\/<\/p><\/div>\n

A maneira como as cidades do interior do Paraguai se desenvolveram tamb\u00e9m \u00e9 bem peculiar. No Brasil, estamos acostumados a pegar um acesso ou um trevo para entrar numa cidade. No Paraguai, na grande maioria das vezes, a pr\u00f3pria estrada \u00e9 a avenida principal da cidade. Giulio nos explicou que isso foi um problema de planejamento das pistas, que foram constru\u00eddas exatamente sobre as antigas rotas de tropeiros, diferente das estradas brasileiras que foram constru\u00eddas pr\u00f3ximas, mas ao lado das cidades. O resultado \u00e9 um misto de marginal, com cara de interior e com muitas homenagens aos mortos na estrada. No princ\u00edpio, achei que o Paraguai teria a mesma quantidade de cruzes que no Brasil, mas logo no primeiro dia j\u00e1 desisti de registrar todas as cruzes que encontr\u00e1vamos. Como disse no post anterior, a sensa\u00e7\u00e3o \u00e9 de andar por um grande cemit\u00e9rio.<\/p>\n

Est\u00e1vamos apreensivos quanto a onde terminar\u00edamos dormindo, uma vez que fomos diversas vezes recepcionados pelas prefeituras e secretarias de esportes no Brasil. Por l\u00e1, no primeiro dia encontramos um brasileiro que mora no Paraguai h\u00e1 d\u00e9cadas e que nos permitiu armar a barraca no seu quintal. A cidade era Campo Nueve (ou Doctor Eulogio Estigarribia, como renomearam, mas todo mundo chama de Campo Nueve). Antes de chegar na casa, o Affonso ficou pra tr\u00e1s, enquanto eu seguia a moto do brasiguaio. Foi a oportunidade de usarmos pela primeira vez os radinhos que compramos em Foz do Igua\u00e7u, exatamente pro caso de nos separarmos. Conhecemos toda a fam\u00edlia do nosso anfitri\u00e3o, ganhamos uma hamburguesa, dormimos cedo e partimos pra San Jos\u00e9 Del Arroyo.<\/p>\n

Nesta cidade, fomos recebidos pelo di\u00e1cono da igreja local. Armamos a barraca numa esp\u00e9cie de palco anexo \u00e0 igreja, onde o ar era fresco de noite, mas que descobrimos ser uma \u00e1rea bem aberta \u00e0 circula\u00e7\u00e3o de pessoas. Tivemos que revezar cuidando das coisas, o que n\u00e3o foi muito dif\u00edcil j\u00e1 que n\u00e3o havia nada o que fazer na cidade. O curioso foi receber uma jarra de suco espontaneamente da vizinha da igreja. Eu e o Affonso \u00e0s vezes brincamos que estamos jogando Zelda e que ganhamos alguns itens. Em Ponta Grossa, o Cl\u00e1udio nos presenteou com duas meias de dedos, melhores para o frio. Em Cascavel, o T\u00falio deu Malto Dextrina ao Affonso, que serve pra repor carboidratos. Em Ibema, o Affonso recebeu um tupperware grande de comida de uma mulher e mais 10 reais de um senhor. Mais pra frente, conto tamb\u00e9m dos itens que perdemos pelo caminho.<\/p>\n

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Meias de dedo!<\/p><\/div>\n

Ainda em San Jose del Arroyo, um raio da roda traseira do Affonso estava quebrado. E pra nossa total surpresa, n\u00e3o havia bicicletarias na cidade. Nenhuma. Veja como faz sentido: a crian\u00e7a com 12 anos j\u00e1 est\u00e1 aprendendo a usar as marchas na moto. Em todos os lugares, s\u00f3 existem borracharias e nenhuma bicicletaria. O calor nessa regi\u00e3o variava entre 28 e 37 graus. Tudo isso colabora pra que n\u00e3o haja demanda por bicicletas, tampouco por bicicletarias. N\u00e3o t\u00ednhamos a ferramenta pra sacar o cassete, e o Affonso tentou resolver com um cara que arrumava motos. N\u00e3o rolou o improviso e n\u00e3o t\u00ednhamos confian\u00e7a pra ele rodar 103 km at\u00e9 Asunci\u00f3n com o raio quebrado. A solu\u00e7\u00e3o foi ele ir de \u00f4nibus e eu ir sozinho de bicicleta.<\/p>\n

Sa\u00ed de San Jose tarde, l\u00e1 pelas 11h. Cheguei a Asunci\u00f3n, depois de uma parada pro almo\u00e7o e tr\u00eas pra tomar sorvete, quando a noite j\u00e1 chegava. Logo na entrada, j\u00e1 encontrei com um mec\u00e2nico que relembrou a Guerra do Paraguai. Essa imagem da guerra, bem como a guerra contra a Bol\u00edvia, forjaram o imagin\u00e1rio e a identidade nacional (ao menos pelo que eu pude ver) e estar\u00e3o presentes durante toda a nossa passagem pelo pa\u00eds. Cheguei no ap\u00ea do Giulio e o Affonso j\u00e1 estava por l\u00e1. Alguns dias de wi-fi, cidade grande e cervejas nos esperavam.<\/p>\n

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Entrando em Asunci\u00f3n - registro da gopro<\/p><\/div>\n

Ficamos ao todo 3 dias e 4 noites da casa do Giulio, nas quais fomos convidados todos os dias pra sair ao pub mais pr\u00f3ximo, com a ilustre companhia do nosso anfitri\u00e3o. Giulio \u00e9 editor de uma TV local e m\u00fasico da orquestra municipal. Mora na regi\u00e3o central de Asunci\u00f3n e conhece gente pra caramba por l\u00e1 (parecia um vereador cumprimentando eleitores a cada esqina). Com ele, fomos a um pub e tr\u00eas restaurantes massa pra caramba. Um dos rest\u00f4es, o melhor de todos, foi o Lido, que j\u00e1 estava super indicado pelo Gilberto Kyono. Os pre\u00e7os eram bem fora da curva da vida franciscana da estrada, mas nada como voltar um pouco a ter o que era o cotidiano de S\u00e3o Paulo.<\/p>\n

Foi tamb\u00e9m por meio do nosso anfitri\u00e3o que come\u00e7amos a ouvir uma outra hist\u00f3ria do Paraguai, que s\u00f3 vai ganhar forma mais precisa quando sa\u00edmos do pa\u00eds. Cabe dizer que a Guerra do Paraguai, que estudamos super pouco por aqui, matou 90% da popula\u00e7\u00e3o masculina do pa\u00eds, o que j\u00e1 d\u00e1 uma id\u00e9ia do tamanho da destrui\u00e7\u00e3o que causamos. Boa parte das quest\u00f5es de diplomacia do Brasil s\u00e3o apresentadas hoje como forma de compensar os estragos da guerra, mas no geral o Paraguai continua vendendo quase a metade da energia de Itaipu super barato pro Brasil e continua no caminho do subdesenvolvimento, com seus carros importados quase sem impostos e divis\u00e3o de terra extremamente concentrada.<\/p>\n

Asunci\u00f3n \u00e9 uma capital ca\u00f3tica como a S\u00e3o Paulo de 10 anos atr\u00e1s, onde os donos de carro mandam. A \u00fanica imagem da cidade que me tira esse referencial \u00e9 a da comemora\u00e7\u00e3o do dia dos Her\u00f3is. Calhou de estarmos l\u00e1 nesse feriado e fui assistir os festejos na Pra\u00e7a dos Her\u00f3is. Tanto a pe\u00e7a quanto a apresenta\u00e7\u00e3o de dan\u00e7a referenciavam a morte do Marechal Solano L\u00f3pez, assassinado pelo ex\u00e9rcito brasileiro e que deu fim \u00e0 Guerra do Paraguai. Sa\u00ed com essa imagem forte na cabe\u00e7a: a de uma identidade nacional forjada na morte e nas derrotas. Na Guerra com a Bol\u00edvia, o Paraguai ganhou, mas cedeu territ\u00f3rios no acordo de paz, o que tamb\u00e9m \u00e9 uma esp\u00e9cie de derrota. No entanto, mesmo assim eles t\u00eam um dia para comemorar seus her\u00f3is e n\u00e3o h\u00e1 uma cidade por onde passamos que n\u00e3o tenha uma rua \u201cMariscal L\u00f3pez\u201d.<\/p>\n