Arquivo mensal: janeiro 2012

Primeiros dias

São 00h39, Affonso ronca na cama ao lado. Estamos no hotel Pilar, em Pilar do Sul, sudoeste de São Paulo e esse é o fim do segundo dia de viagem.

Erramos tudo no primeiro dia. Quisemos fazer um caminho por Taboão da Serra e Embu, que foi massa de conhecer e almoçar, mas fomos parar na periferia de Cotia, que deve ser a perifa de relevo mais acidentado do Estado. Surreais as ladeiras de terra que pegamos. Isso nos atrasou bastante e fomos parar em Ibiuna às 22h! Só precisou de um dia pra entendermos que não vamos mais pedalar de noite.

No mais, fomos recebidos por uma família porreta em São Roque: Thaís, e seus filhos Ulisses e Júlia. Eles nos ofereceram toda sorte de comida orgânica e comemos feito bodes que são soltos depois de dormir amarrados. Impressionante como o sabor das coisas é totalmente diferente, não só pela comida orgânica, mas pela necessidade primordial de alimentar-se bem. O cansaço era muito maior do que o previsto, mas tínhamos dois sofás pra descansar e estávamos enfim com o pé na estrada.

No segundo dia, rumamos pra São Miguel Arcanjo, mas quem disse que chegaríamos? No caminho vimos cobras mortas, macacos na beira da pista, muitos rios e as subidas pareciam não acabar nunca. Diversas pessoas perguntando onde íamos, buzinando, dando força. Um ciloviajante é meio que um ET mesmo. Acabamos posando em Pilar do Sul, onde estávamos prontos pra acampar, mas por uma sorte dessas que não acontecem duas vezes, uma pessoa pagou o hotel pra nós. Explico essa história na próxima postagem.

Preciso muito agradecer um monte de gente: ao Mau pela câmera emprestada, ao Vitor e à Sheila e família pelo incrível curso intensivo de primeiros-socorros e findi em Indaiatuba, ao Arthur pelos três encontros que nos ajudaram demais, à Julie, pq ela é linda, ao pessoal da Bicicletaria Nobre que deixou minha bike nos trinks, ao Ourinhos pela formatação do projeto comercial da viagem, ao Palmas e ao Silas pelo help informal na oficina Mão na Roda e a todo mundo que está se envolvendo de uma maneira ou de outra. Disse e repito: energia boa nunca é demais.

No mais, eu queria que essa postagem fosse um jorro. Queria que chovesse uma garoa morna e que todo mundo saísse pra dançar em São Paulo. Queria que todo mundo pudesse compartilhar as imagens, as dores e o suor do que vivemos em tão pouco tempo. Sim, talvez um mundo com mais bicicletas fosse realmente menos ruim.

Ps: um poema pra quem está pensando em viajar.

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Se as leis são trabalhistas, como não trabalhar?

Quando realmente precisamos da nossa legislação trabalhista é que podemos ver mais nitidamente o quanto ela foi criada única e exclusivamente pra proteger pessoas que tenham a intenção de (ou são obrigados a) continuar vendendo sua mão de obra por dinheiro até o final da vida.

Explico-me. Por exemplo, aquele seu amigo meio leso, que se mantém na mediocridade cotidiana, fazendo só o que mandam e acessando diariamente o facebook, ele está muito mais protegido pelas leis do trabalho do que você, que resolveu dar um tempo com essa história da exploração do homem pelo homem. Ele, seu amigo limitado, pode ser mandado embora a qualquer momento e poderá ter acesso ao FGTS (Fundo de Garantia por tempo de serviço, sacou? Quanto mais tempo você passa na inércia, mais você ganha), ele vai receber também o seguro-desemprego (oferecido somente a quem entrou no desemprego por obrigação, não por opção), além de multa rescisória no valor de 40% do FGTS (aquele mesmo: quanto mais tempo na inércia, mais você ganha). Ele também vai receber passes livres de metrô e ônibus por 5 meses, para assim facilitar a sua busca por nova labuta.

É óbvio que essas são conquistas históricas, que servem muito mais aos oprimidos do que às exceções (e eu sei que sou exceção). Mas fica claro e cristalino que a moral que essas leis querem criar é a do trabalhador. E só é trabalhador quem procura alguém por quem possa ser explorado a vida inteira. Querendo isso ou não.

Caso você opte por dar um tempo no rolê, pendurar a chuteira só no intervalo da partida, enfim, viver sem trabalhar por um período curto… bem, neste caso você não tem direito a nada. Pelo contrário: cumpra aviso prévio, senão é capaz de você ser descontado. Porque afinal, já temos 30 dias de descanso remunerados por ano, não é mesmo? 2 dias por semana! 3 dias inteiros quando nasce um filho, ou alguns meses caso você seja mulher. Temos licença médica: nem é preciso trabalhar quando estamos doentes. Vendemos só 44 horas da nossa mão de obra por semana, ainda sobram 124 pra tomar transporte público, comer, acessar o Facebook (à vezes conseguimos até acessar do trabalho!). Que mais nós queremos?

O tom irônico desse texto vem exacerbar o que acontece quando se opta por pedir demissão. A dor e a delícia de assinar um documento que atesta sua deserção e o momento exato em que você olha pra tudo isso e percebe que é um jogo simbólico, em que todos realmente acreditam que se trabalharem receberão dinheiro. E recebendo o dinheiro poderão comprar coisas. E quem sabe consigam não só sobreviver, mas também ter conforto. E talvez além de conforto consigam até uma aposentadoria no fim da vida. E talvez a vida assim realmente faça sentido.

Talvez…

Ps: um comentário: Tira esse talvez do final. Você não acredita nisso nem como possibilidade.

De resto, gosto de tudo. Gosto principalmente da tentativa de concessão com as conquistas históricas. São conquistas de reforma! E essa reforma serve apenas para que o trabalhador SOBREVIVA mais ao sistema que o oprime, seja oprimido, portanto, por mais tempo e melhor. E, em sobrevivendo à opressão, sinta-se agradecido por sobreviver. E, logo, sinta-se privilegiado por ser oprimido cercado de tantos cuidados. Enfim, uma reforma que serve a isso aí que você revelou: jogo simbólico + criação da moral do trabalho. Não qualquer trabalho, mas o trabalho cujo sentido é o dinheiro, ou seja, uma coisa que nem existe.

Te amo, desertor. Talvez você vá com menos dinheiro e foda-se – lembra sempre que ele é uma coisa que nem existe!