Mesmo distante uns 1500 kilômetros da última hidrelétrica do Paraguai, continuo marcado pela experiência de ter visto alguns impactos causados por essas gigantices que fomos, humanos, capazes de produzir. Pra quem ainda não foi apresentado, uma usina hidrelétrica é aquela que gera eletricidade transformando a força da movimentação da água em energia elétrica. O Brasil usa muito essa matriz energética e somos ensinados desde cedo que essa é uma energia limpa.
O que esquecem de comentar, em geral, é que essas usinas são intervenções humanas no rumo das águas. Ou seja, não é possível fazer uma usina hidrelétrica sem afunilar a vazão das águas, de forma que se consiga o máximo de pressão da correnteza e da gravidade, gerando mais energia. A solução pra esse afunilamento em geral é a cisão do curso do rio. Constrói-se uma imensa represa cujo único fim é fazer com que a água ganhe mais força de correnteza e de gravidade. Essa imensa represa constuma cobrir cidades, biomas, comunidades ribeirinhas e, às vezes, litígios históricos, massacres populares e cataratas monumentais.
A usina de Itaipu, maior em geração de energia do mundo, localiza-se no rio Paraná, próximo da fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Leste. Binacional, Itaipu nasce de um acordo entre Brasil e Paraguai e tem sua energia dividida igualmente entre os dois países. O Paraguai usa atualmente somente 8% da capacidade de Itaipu para abastecer 90% de sua população. Os outros 42% a que tem direito são vendidos ao Brasil a valores muito, mas muito abaixo dos valores de mercado. Com seus 50% de direito e os 42% comprados a preço de banana do Paraguai, o Brasil abastece 20% da nossa necessidade elétrica. Por aí já temos uma ideia da desproporção territorial entre os dois países.
Aqui começa uma reflexão: você, que está usando seu computador ou celular pra ler esse post e o microondas pra esquentar uma lazanha congelada, depende de obras faraônicas como Itaipu para existir. Nossa necessidade de energia é diária, constante e obrigatória para a maneira como vivemos. Esse é um das questões das usinas hidrelétricas, elas permitem uma forma de existência muito confortável (para quem pode pagar por energia).
No entanto, o custo ambiental dessa energia é o aumento da temperatura de regiões inteiras (vide os 4 graus que a cidade de Foz do Iguaçu ganhou após a construção de Itaipu), extinção de espécies de peixes que dependem da desova após nadar contra a correnteza (porque obviamente não é possível nadar no sentido inverso das turbinas de energia), expulsão da população que dependia essencialmente da pesca ou indiretamente da fauna da região inundada. Além desses impactos para a população e biomas locais, obras faraônicas, sobretudo no Brasil, são normalmente executadas com condições subhumanas de trabalho, alta quantidade de acidentes e praticamente nenhum planejamento quanto ao que vai ser feito da população que trabalha na sua construção (vide Brasília, a simbólica capital do nosso país).
É curioso notar como alguns dos impactos são previstos na própria construção das usinas, mas a solução deles, mesmo que de forma insuficiente, vem só muito depois da construção. Por exemplo, o curso das águas pode receber um caminho alternativo para que os peixes possam subir a correnteza. Mas no caso de Itaipu, esse caminho só foi feito mais de 20 anos depois do represamento. No caso de Yacyretá – usina hidrelétrica também binacional, também com águas do rio Paraná, mas na fronteira entre Paraguai e Argentina – criou-se uma espécie de elevador de peixes, para fazer a reconexão dos cursos. A população local conta que esse elevador é acionado só em dias de visita de políticos.
Outro impacto óbvio da presença das usinas é o que vai pra baixo d’água. Entre as cidades de Encarnación, no Paraguai, e Posadas, na Argentina, está o final do Rio Paraná, início da represa da usina de Yacyretá. A área às margens do rio foi totalmente inundada nas duas cidades, o que permitiu a transferência de indesejadas favelas, a criação de praias artificiais e o redesenho da centralidade das cidades. Em Encarnación, se você quiser nadar, existem tramos habilitados e inabilidatos. Os primeiros, são aqueles em que há investimento massivo da usina, por meio de ações junto à prefeitura, para que se forme uma espécie de orla artificial que se parece muito com uma cidade praieira. Os inabilitados são aqueles que ainda guardam em suas profundezas as casas de moradores que habitavam a região mais próxima da margem do rio. Seria o mesmo que dizer “não nade aqui, se não quiser pisar em telhados”.
A decisão de onde exatamente colocar as usinas normalmente passa por critérios que não são nada claros. Neste exato momento, o Brasil está construindo uma hidrelétrica na Amazônia (!!!!), local de reservas indígenas, bioma inigualável, tudo isso em Belo Monte, Pará. Antes disso, já construímos uma hidrelétrica que inundou a cidade histórica de Canudos, local onde aconteceu um dos mais importantes movimentos populares de vida comunitária e resistência e, posteriormente, um os maiores massacres populares – orquestrado pelo próprio governo – de nossa história. A própria Itaipu poderia ter sido construída em outros trechos do rio Paraná, inclusive integralmente no Brasil. No entanto, a usina foi construiída na fronteira com o Paraguai, o que dá margem para que vejamos essa decisão como uma espécie de acerto de contas histórico, visto que o Brasil foi um dos protagonistas do genocídio conhecido como Guerra do Paraguai, em que matamos (nós, Argentinos e Uruguaios) 90% da população masculina do Paraguai.
Essa escolha de local inundou também uma das maiores cataratas do mundo. Perto de Itaipu é fácil conseguir informação sobre as sete quedas, e no lado do Paraguai, a mesma cachoeira era conhecida como Salto Guairá. A cidade de Guaíra, no Brasil, fica exatamente ao lado de onde era esta cachoeira, hoje visível somente aos peixes que restaram nessa região. O que se escuta no Paraguai é que essa era uma área de litígio entre Brasil e Paraguai. Como se sabe, o Paraguai perdeu muitas regiões depois da Guerra. A província de Missiones e parte das províncias de Corrientes e de Santa Fé na Argentina eram território paraguaio. A cidade de Cuiabá era território paraguaio. E a região do Salto Guairá também estava entre esses territórios tomados, mas com uma represa monstruosa ninguém tem mais dúvida de onde termina o Paraguai e começa o Brasil.
Um dos lugares mais impressionantes que visitei foi a cidade de San Cosme y Damián, Paraguai, que abriga Ruínas Jesuíticas e está à margem da represa de Yacyretá. Neste trecho, são quase 40 kilômetros de uma margem até a outra. Quase no meio da represa, encontram-se dunas que são totalmente inimagináveis a quem olha o mar em que se tornou a represa. Essa dunas eram parte da paisagem nativa, composta por dezenas de ilhas no Rio Paraná. Algumas delas com dunas e a maior parte com vegetação nativa. O que vemos hoje é o que restou: apenas duas dunas, as mais altas, que gradualmente estão sendo carregadas pela represa.
As dunas de San Cosme y Damián ainda são visitáveis. Mas corra, porque ano a ano elas vão perdendo areia para a represa. A pergunta que resta é: quanto vale o nosso conforto? Ou por outra, se falamos em termos de progresso, então progresso de quem? Para onde? A que serve? Usinas hidrelétricas são o tipo de construção que demonstra o quanto estamos plenamente dependentes de uma forma de vida. E será que essa forma de vida fomos nós que escolhemos?
Ps: esse é o tipo de texto que me interessa publicar em outros lugares. Como este, escrevi também, de forma mais ficcional, um texto sobre o Parque do Zizo. Se você souber de publicações onde interessa receber esse tipo de texto, por favor entra em contato.
Ps 2: Pequeno vídeo em que o condutor do barco que nos levou até as dunas comenta sobre como os problemas poderiam ter sido evitados: