Arquivo mensal: fevereiro 2012

Dois barbudos-bronzeados no templo do capitalismo

A Juliene, minha namorada, colou em Cascavel e Foz do Iguaçu pra encontrar com a gente no carnaval. Desse encontro, saiu um breve relato dela sobre esse lugar absurdo que é a tripla fronteira. Publico o relato abaixo. Depois adiciono fotos.

Viajar de bicicleta bronzeia. Quando encontrei aquele moço galego com quem compartilhei 90% dos meus dias nos últimos anos, quase não reconheci. Barba + sujeira de estrada + muito sol na pele todo santo dia fizeram um rosto novo. Bonito. Marca de uma vida diversa.

De São Paulo a Cascavel foram cerca de 12 horas de viagem de Carnaval em um busão promocional beeeem ruim – quase o mesmo número em horas que Fabrício e Affonso usaram em dias no mesmo percurso. A conclusão é que os motores “pulam” muitas possibilidades nessa vida. E que eles mentem. A velocidade deles mente o tempo da vida.

De Cascavel, partindo da deliciosa casa do Túlio (que nos recebeu pelo Couchsurfing – oba! Obrigada!), seguimos para Foz do Iguaçu – os maluco de bike e eu de busão. Eles chegaram quase uma hora antes de mim em Foz. Eu saí de Cascavel quase 8 horas depois deles.

O quadradinho da janela do ônibus não me impediu de sentir a aproximação do templo do consumo sem impostos (ou quase sem impostos). Ai, o Paraguai. Para o quê?

Desde muitos quilômetros antes da fronteira, outdoors gigantes nos contam tudo o que podemos encontrar no paraíso. Tudo escrito no imperativo. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. A percepção veio meio lenta, distraída – eu estava escrevendo versos sobre solidão. De repente, percebi a cabeça acelerar e notei que eu estava repetindo mentalmente uma série de frases sobre as quais não tinha refletido. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. O melhor “não sei o quê”, o mais novo “não sei o que lá”, o maior “não sei mais o quê”, o mais visitado “não sei mais o que lá”.

Em vez de correr pra Monaliza (a loja campeã em quantidade de anúncios na estrada), corremos para a família ainda desconhecida do Fabrício. Os Muriana são muitos e bons em Foz e não existe sensação mais aconchegante na vida do que casa de vó. E estivemos lindos dias na casa da Muriana, avó de Luiza, Xandinho e Angelo.

 

Nos primeiros dias, trocamos a abundância de produtos pela abundância de água e os meninos trocaram as bicicletas pelo carro na carona da Ju em um dos dias e do Xande no outro dia.

Primeira parada: Usina Hidrelétrica Itaipú Binacional. Além de todo o impacto ambiental que já conhecíamos de ouvir falar e da complexidade das negociações entre Brasil e Paraguai (dívidas de guerra, questões territoriais, etc), uma novidade triste: um pouco acima da Usina, ainda nas águas do Rio Paraná, existia, antes da construção da barragem, Sete Quedas, um conjunto de quedas d’água provavelmente maior em volume do que as mundialmente conhecidas Cataratas do Iguaçu. A belezura toda foi afundada 1982, como resultado do trabalho de mais de 40 mil pessoas que construíram Itaipu.

Segunda parada: Cataratas do Iguaçú, passeio pela estrutura do lado argentino das Cataratas – ponto de vista mais privilegiado que o nosso. É praticamente impossível explicar o que é uma queda d’água daquele tamanho. Os olhos ficam cheios e ainda sobra água pra ver. Nas junções entre quedas, às vezes, fica impossível estabelecer fronteiras, tudo se confunde, a visão fica bagunçada, a água puxa o olhar pra baixo até o rio. É coisa demais pra olho humano. Uma das coisas mais bonitas que já vi na vida.

Nada me tirava da cabeça a imagem puramente idealizada do que deveriam ser as Sete Quedas, que deixaram de existir por decisão humana e em nome do “desenvolvimento”. Fabrício fez uma observação que ainda me assusta: de certo modo, parece que a barragem de Itaipú mimetiza as Cataratas, copia (feiamente, convenhamos) a natureza, as barreiras naturais. Quase daria pra confundir, se uma coisa não fosse relativa a vidas e outra relativa a mortes (145 de trabalhadores, segundo um dos operários que fez parte da construção e nos acompanhou na visita. Sem contar peixes, pássaros, onças, …).

E falando em coisas relativas à morte… vistas as cataratas do rio Iguaçu (e a histeria turística de fotos e poses em seu entorno), o resto… o resto é comércio. O resto é dinheiro. O resto é trabalho absolutamente indigno, mal pago, mal valorizado, mal aplicado, mal planejado de Ciudad del Este. O resto é uma vontade contraditória de que o rio invadisse justamente aquele lugar fronteiriço em que o sistema de valores que vivemos ganha vida em cada cantinho e se mostra, pelo menos pra mim, enorme e poderoso. O resto são pessoas virando mercadoria, trabalho virando mercadoria, vida virando mercadoria. Cotação de dólar, cheiro de desconfiança, seguranças hiper-armados contra-quem? O resto é a pressão para que você tente ter tudo aquilo de que você não precisa. O resto é, portanto, relativo à morte. Porque o dinheiro e a mercadoria são mortos. E boa parte das pessoas está mais preocupada com dinheiro e mercadoria do que com pessoas. (A outra parte não está preocupando-se, está vendendo barato seu sangue e suor).

Segunda semana no Paraná (12 a 19/2/2012)

No último domingo completamos 3 semanas de viagem na casa de mais um anfitrião do couchsurfing, o Túlio, em Cascavel-PR. Hoje, já em Foz do Iguaçú, estamos muito próximos tanto de sair do estado do Paraná quanto de cruzar nossa primeira fronteira pra outro país. Dá pra dizer que a primeira etapa de nossa viagem foi completada.

Eu queria relembrar aqui a alegria que senti ao cruzar a divisa de estados entre São Paulo e Paraná. Ainda em São Paulo, comentando com amigos sobre os planos da viagem, eu costumava dizer que, mesmo com a imensa ambição de nossa viagem (descer pro Ushuaia e subir ao Alaska), se eu conseguisse chegar no Paraná já seria um grande feito. Então o limite mínimo do meu fracasso já foi superado e estamos cada vez mais adaptados às condições da viagem. Daqui pra frente os desafios tendem a ser maiores: maior necessidade de adaptação à novas línguas, hábitos e costumes locais, comidas, condições climáticas. As bicicletas também já estão começando a apresentar desgastes, pelo uso intenso e o peso, e a mudança de tipos de estrada (do asfalto pra estradas de rípio, terra ou outros) pode aumentar esse desgaste. O vento, que até agora pouco ou nada interferiu no ritmo da pedalada, daqui pra frente tende a ser um fator determinante caso esteja contra ou a favor de nossa direção. E todas as subidas que enfrentamos (e foram muitas e sempre) devem ser mesmo só a raspa da sujeira debaixo da unha do dedinho do pé de uma miniatura em argila, mal-feita, feia e por R$1,99, da cordilheira dos Andes.

DIÁRIO DA SEMANA

Saindo de Ponta Grossa na manhã de segunda-feira passadas, depois da despedida pra Eva e o Cláudio (que, curiosamente, se despediram com aquela saudação típica japonesa, mas discretamente), seguimos em direção a Prudentópolis, uma pequena cidade com 70% da população descendente de ucranianos ou poloneses. Logo na entrada da cidade, um portal de bem-vindos com algumas características típicas de igrejas ortodoxas e  construções do leste europeu. No pátio de uma escola, durante o recreio, só dava criancinha de cabelo branco-quase-loiro correndo, e as professoras gritando: “Damasceno, larga o cabelo da Lyaksandra! Joãozinho e  Ivaniev, brincadeira de mão não pode!”. Era curioso parar numa loja ou bar e ver aqueles homens chucros, aquele típico capiau interiorano do Brasil passando a tarde com um copo de cerveja na mão e ruminando umas consoantes na boca, mas na figura de um eslavo.

Chegada a Prudentópolis-PR

Mais uma vez fomos buscar a secretaria de esportes local, e mais uma vez pudemos dormir num banheiro do ginásio de esportes.  Guardamos nossas coisas e fomos tomar sorvete, conhecer duas igrejas locais (a ucraniana e a polonesa, fotos abaixo), e comprar uma espécie de linguiça ucraniana, a cracóvia, que podia ser de porco ou frango. Compramos a de porco, mais um queijinho ucraniano bem macio, e um pão feito no dia, pra nosso jantar e café da manhã do dia seguinte. À noite no ginásio, conversei um bom tempo com o guardião, um homem com um jeito muito singelo de falar das próprias fraquezas ou dores (a propósito, não foi o primeiro paranaense em quem reparei esse jeito). Me contou devagar, baixo, um pouco lamentoso mas tranquilo: “Olha, piá, nunca fui bom de bola. Eu gosto de bola, sabe, mas meu pé não encaixa, daí”. Acho que sou incapaz de expressar como ele falava, mas tentei aqui só pra registrar. Antes de dormir, ele nos alertou: “Se começar a ouvir uns barulho na noite repara não, é a coruja que entra no ginásio pra caçar filhote de pombo e bate com a asa no teto”.

No banheiro do ginásio de esportes em Prudentópolis-PR

A igreja ucraniana de Prudentópolis

O interior da igreja, com as imagens de santos pintadas sobre um fundo dourado, típicos na iconografia cristã ortodoxa

Tocando o sino

A igreja polonesa

Fomos dormir à noite sem termos decidido o destino do próximo dia. Nem olhamos o mapa. De manhã, pouco antes da partida, combinamos: “vamo indo. Uma hora a gente pára.”. É gostoso sair meio sem rumo por aí, mas a falta de planejamento também traz alguns problemas. Depois de termos pedalado mais de 100 km, encarado uma serra muito extensa com subidas infinitas, já com as pernas cansadas, uma ameaça constante de chuva e sem saber direito quanto mais teríamos que pedalar até achar uma fazenda, povoado, distrito ou cidade, paramos num posto de atendimento da estrada pra descansar, tomar chafé e pedir orientações. A próxima cidade chamava-se Candói, e o primeiro bairro dela, Lagoa Seca, ficava a uns 13 km de onde paramos.

Araucária pouco antes de começarmos a subir uma das serras paranaenses

Parada pra descanso no mirante da serra

O que uma tubaína faz com um jovem...

Em direção à chuva

Parada no posto de atendimento da estrada

Assim que vimos um posto de gasolina com restaurante aberto, e do outro lado da estrada algumas casas e um colégio fechado, paramos. Já eram quase 18:00, e não tínhamos idéia onde buscar hospedagem. Parando pra comprar umas bananas (boas pra recuperação muscular) numa espécie de padaria/mercadinho, o dono nos sugerir dormir numa construção ao lado de sua venda, um galpão em construção. Conversamos com o pedreiro responsável pelo espaço, que topou na hora: “OOoi piazão. Fica a vontade, piá, pode por suas coisa naquele quarto ali, depois fecha as porta com o madeirite e aquelas tábua de madeira que entra cachorro à noite” (os paranaenses dizem piá pra todo moço ou rapazinho. Pras mocinhas em quem o piá tem algum interesse, chamam de guria). Demos uma boa varrida no chão de um quarto, deixamos nossas bicicletas e bagagens lá, e atravessamos a estrada pra comer no restaurante do posto de gasolina e entrar na fila do banho junto com os caminhoneiros.

Na manhã do dia seguinte um imprevisto: o pneu traseiro da minha bicicleta acordou murcho. Trocamos a camara e deixamos a furada pra remendar depois, correndo assim o risco de não ter uma camara reserva caso outra furasse no caminho. Fomos em direção a Nova Laranjeiras. Depois da parada pro almoço, um novo imprevisto: dessa vez, o pneu do Fatício estava murcho. Ele remendou alí na hora, retirou com uma pinça o meliante incrustrado no pneu (um fiapo de arame de pneu de caminhão, a mesma causa do meu furo). Nessa parada pra almoço e remendo, já começamos a ver com alguma frequência placas de carros argentinos e chilenos, até conversamos com um senhor chileno de uns 50 anos que já teve sua fase aventureiro de moto até alguns anos atrás.  Retomamos o pedal só depois das 15:00, o que nos obrigou a pedalar com mais velocidade pra tentar chegar em Nova Laranjeiras antes das 18:00.

Os piazinhos curiosos com o conserto do pneu furado da bicicleta do Fatício, depois de nosso almoço a caminho de Nova Laranjeiras

Depois de uma pedalada forte, chegamos em Nova Laranjeiras a tempo, mas tivemos que esperar até mais de 20:00 até que alguém aparecesse no ginásio de esportes. Passamos na prefeitura, num outro ginásio, na escola municipal (conversei com o diretor), todos falavam do ginásio de esportes como o local pra ficarmos mas ninguém sabia dizer quando nem se abriria com certeza. A dica mais incisiva veio de uma moça, ou eu diria, uma guria, que atendia sozinha no balcão de uma lanchonete em frente ao ginásio. Tá certo, eu até ouvi dela que às 20:00 vinha um grupo pra aula de caratê, mas minha atenção tava mesmo vidrada nas suas…opções de comida. Tomei coragem e perguntei se eu podia comer uma de suas…paçocas. 15 centavos o torrão. Um pouco secas mas ainda assim muito gostosas essas paçocas do interior! Deu 20:00 Mais uma vez conseguimos hospedagem através do Secretário de Esportes (o Hamilton, muito gentil), mas dessa vez não no ginásio: não sei como, nem quem financiou, mas ele veio com a chave de um quarto do único hotel da cidade, onde poderíamos passar a noite. Agradecemos muito, dormimos numa cama fofinha e partimos em direção a Ibema, a última pequena cidade antes de Cascavel, a quinta maior cidade paranaense.

Em Ibema, fomos direto pra prefeitura, onde tomamos nosso primeiro chimarrão (disposto “publicamente” em cima de um balcão de atendimento da prefeitura, com a garrafa térmica ao lado). Nos apresentaram a um senhor que nos encaminhou ao assistente social da cidade. Fomos todos até uma casa abandonada, com alguns brinquedos infantis jogados no chão. A casa onde passaríamos a noite era uma antigo orfanato, hoje transferido pra outro terreno, e tinha vários quartos, chuveiro quente e pulgas, mas tava ótimo. O Fatício passou a tarde e parte da noite tentando resolver alguns problemas meio graves que surgiram na sua bicicleta: o pneu que compramos, da melhor qualidade, estava com umas bolhas nas laterais e certamente condenado, deveria durar 8000 km e não durou muito mais que 1000 km; ao desmontar a corrente pra limpar e recolocá-la, uma das peças do câmbio que deveria rodar não rodava mais, e isso impediria ele de pedalar. E na minha, o pneu traseiro estava rodando com dificuldades, travava no freio, o que me obrigou a afrouxar um pouco o freio. O Fatício passou horas mexendo na bike, e na manhã seguinte, não nas melhores condições, partimos pra Cascavel esperando encontrar lá uma boa bicicletaria que resolvesse tantos problemas surgidos tão bruscamente.

Fatício mexendo nas bicicletas em Ibema-PR

Jantar em Ibema: macarrão temperado e arroz no pote plástico doado por uma senhora, e completamos com atum em lata

A casa onde passamos a noite em Ibema

Já a poucos quilometros de Cascavel, um ciclista com quem cruzamos no sentido contrário nos alcançou após uma meia hora de nosso primeiro encontro, pouco antes de pararmos pra tomar um suco de milho na beira da estrada. Ele se chamava Roberto e ficou admirado com o que estávamos fazendo, disse que sonha viajar de bike, quis saber alguns detalhes, tirar fotos conosco. Voltaríamos a encontrá-lo já em Cascavel, onde ele pegou nossos contatos, ofereceu sua casa para ficarmos (mas já tínhamos um novo contato do couchsurfing acertado), e nos indicou uma boa bicicletaria pra vermos com calma todos os problemas surgidos nas duas bicicletas nos últimos dias. Os mecânicos eram ótimos, cobraram baratíssimo e deixaram as bicicletas zeradas. Saímos da loja pra casa do Túlio, contato do couchsurfing que nos hospedaria por duas noites, e onde iríamos encontrar também nossa primeira visita extraordinária durante a viagem: a Juli, namorada do Fatício, que aproveitou o feriado de Carnaval pra sair de São Paulo e nos acompanhar de Cascavel até Foz do Iguaçú.

Já estamos em Foz, mas deixarei o relato dos últimos 3 dias pro Fatício.

CONSIDERAÇÕES

Com exceção de Prudentópolis, todas as cidades seguintes por onde passamos tiveram poucos atrativos (fora a paçoquinha memorável de Nova Laranjeiras, e uma menina da barraca de pastel em Ibema: pedi um de “*eijo” pra ver o que vinha…Também um pouco seco, mas bem recheado). É claro que nunca se sabe quando alguém interessante vai conversar contigo, ou o que pode te cativar mesmo nos lugares menos suspeitos, e muitas coisas interessantes aconteceram sim durante esses últimos dias, como em todos os outros dias. Acontece que nessa semana minha atenção ficou mais focada nas pedaladas mesmo, em tentar desenvolver técnicas pra render melhor na marcha pesada durante subidas, na escuta de música como motor, no uso de acessórios como os óculos, a sapatilha, as luvas, a calça elástica apertadinha que acaba com nossa moral.

A calça apertadinha de ciclista, e as sapatilhas

Vou deixar pra escrever com mais calma sobre esses acessórios e quem sabe também sobre algumas técnicas para pedalar que tenho aprendido numa próxima postagem. Estamos realmente muito bem por aqui, e espero que quem está nos lendo também esteja bem, e curtindo nos acompanhar. Um grande beijo a todos.

 

Só fotos (do Affonso) – São Paulo e Paraná (de 22/1 a 14/2)

Arrumação das malas na véspera da partida, na sala da minha mãe em São Paulo.

Preparando um ovo cozido no apartamento do Fatício pra ver se o fogareiro tava funcionando.

Montando a barraca pela primeira vez, também no apartamento do Fatício e Juli (e Paco, o gato preto do rabo torto)

Minha mãe junto ã bicicleta carregada, na noite anterior à partida, quando demos uma volta-teste pelo Minhocão em São Paulo

Momentos antes de nossa partida, no portão da Escola Técnica Federal de SP. Nossas famílias e amigos na despedida.

PRIMEIRO DIA DE VIAGEM – 22/1/2012

Uma das já várias cobras mortas (e uma viva) que cruzamos pela estrada. Aqui, entre Embú e Cotia-SP

Chegada à noite em Ibiúna-SP, no primeiro dia de viagem

Garapa dos japas na estrada a caminho de Pilar do Sul-SP

Pedalando a caminho de São Miguel Arcanjo-SP

SÃO MIGUEL ARCANJO/SP (de 24 a 29/2/2012)

Chegada em São Miguel Arcanjo

Não comemos no X-panzé, em S.Miguel Arcanjo

Preparando almoço na casa da Ne

Fatício no quintalzão da Ne

Fábrica de chá verde

Fábrica de chá

Parada em Itararé-SP, só pra almoçar

PARANÁ

Divisa entre os estados de São Paulo e Paraná

Um dois muitos rios que cruzam as estradas do Paraná.

SENGÉS/PR

Fatício e Edes, da Secretaria de Esportes de Sengés-PR

Ginásio de esportes em Sengés-PR

Heron, grande cara, nos levando de carro pra conhecer a gruta da Barreira no seu intervalo de trabalho

GRUTA DA BARREIRA – SENGÉS/PR

Só a estrutura de uma antiga ponte pra o trem que trazia carga do Paraná pra Sorocaba-SP

Heron e Fatício estudando o mapa paranaense.

Ginásio de esportes em Sengés

Chão do vestiário masculino onde dormimos por 3 noites

CASTRO/PR

A ponte de Castro-PR, pequena cidade histórica de colonização holandesa

Mãe, estou bem, saudável, corado, usando capacete, e em Castro. Te amo, beijos

Um senhor de Castro e sua mulher, namorando na beira do rio em Castro. Ele nos chamou pra conversar, pagou um sorvete de nata pra cada um, e contou por quase uma hora coisas da vida.

PONTA GROSSA/PR

Calil, Eva e Cláudio, na nossa despedida, nos orientando como pegar a estrada de Ponta Grossa pra Prudentópolis-PR

Almoço na estrada: buffet livre por R$ 6,50 + tubaína de tutti frutti + Fatício em momento intrigante + Bob Esponja na tv ao fundo

 

Castro e Ponta Grossa/PR – 12 e 13/2/2012

Num trabalho espiritual que participei em Julho de 2011, depois dos transes muito loucos, eu comia uma banana sozinho num canto e do nada veio conversar comigo uma negra careca ossuda beiçuda, toda de branco e cheia de brinco e argola, ainda mais pra lá que pra cá. Perguntou meu nome, o que eu fazia, e afirmou que eu levava meus propósitos meio nas coxas. Eu disse que não, mas não insisti nisso que não sei o que dá discordar de oráculos. Ela me disse que Ele me amava e saiu por aí. Isso aconteceu umas duas semanas antes do Fatício me convidar pra fazer essa viagem.

Ontem comemoramos duas semanas levando a vida nas coxas! Mais magrelos que as magrelas, mas cada vez mais condicionados. Ao finito e além!

Chegar a uma cidade nova tem sido sempre um desafio para achar um restaurante bom e barato que sirva muita comida; assim como o desafio, maior, de achar um lugar para passarmos uma ou mais noites, com valor mínimo ou de graça (até hoje só pagamos uma noite num hotel, porque estive com febre) com alguma segurança pra nós e pras bicicletas e bagagens. Nosso repertório de estratégias inclui buscar a prefeitura (em particular as secretarias de esporte locais), igrejas, conventos, evangélicos, bombeiros, grupos de motoqueiros, Rotary club (nesse caso, seríamos filhos de sócios, mas esquecemos a carteirinha em casa). Se não conseguirmos nada disso, temos a barraca e podemos pensar em armá-la em casas vazias, cemitérios, estacionamentos, ou em terrenos nos limites da cidade. E, se não houver outra opção e montar a barraca nessas situações parecer nos oferecer algum risco, aí podemos pensar, talvez, quem sabe, com dor, pagar um hotel ou camping. Mesmo assim trazemos uma carteirinha de alberguista.

Mas se relembrarmos todas as pessoas ou lugares que até agora nos hospedaram, uma parte foram contatos (o que tende a diminuir muito quanto mais nos afastarmos de São Paulo e de nossos conhecidos), outra parte foram pessoas dos locais recém-chegados que se esforçaram pra nos abrigar de alguma forma, duas noites foram conseguidas em secretarias municipais de esporte e cultura (uma indiretamente, através do contato da Lurdes em Capão Bonito, outra diretamente com o secretário de Itapeva). Apenas ontem acessamos o couchsurfing.org , uma opção que consideramos muitíssimo, e que logo explicarei melhor.

Neste último sábado dormiríamos em Castro, cidade histórica de colonização holandesa. Logo ao chegar na cidade, buscando o centro pra achar algum movimento mas sem chances de encontrar prefeitura ou muito comércio aberto, um senhor veio nos perguntar de onde vínhamos. A conversa nem precisou durar tanto até que esse senhor, o Valdir, após uma ligação pro filho, já estivesse nos conduzindo para um estacionamento nos fundos de um boteco onde poderíamos montar a barraca e passar a noite.

S. Valdir, de Castro-PR

S. Valdir nos conduzindo até o estacionamento onde montaríamos a barraca pra passar a noite em Castro

No dia seguinte acordamos tarde, desmontamos a barraca, preparamos as bicicletas e partimos por volta das 13:00 em direção a Ponta Grossa (seriam só 40 km de estrada), a maior cidade por onde passamos desde a saída de São Paulo. Chegamos umas 16:00 do domingo com a perspectiva de que seria bastante difícil achar um lugar pra passar a noite.

Mas ontem a sorte definitivamente esteve do nosso lado. O fim de semana das cidades pequenas efetivamente é usado pra parar, é difícil achar comércio aberto, não há prefeituras funcionando, e menos pessoas nas ruas. Mesmo em Ponta Grossa, que é uma capital regional, um grande centro urbano paranaente, tivemos dificuldade pra achar um restaurante aberto na tarde de domingo.

Achamos um prato feito aberto e durante o almoço, ataquei o prato e o Fatício demorou uns 15 minutos pra começar a comer, ficava só fuçando a internet no celular dele. Como ele faz isso com bastante frequencia, pra acessar mapas, enviar mensagens, continuei comendo. No meio do almoço ele comentou que haviam 13 pessoas cadastradas no couchsurfing em Ponta Grossa, e que estava enviando solicitações de hospedagem. Ao fim do almoço, menos de meia hora após a solicitação, já tínhamos uma resposta positiva de alguém que morava a poucos quarteirões de onde almoçamos. Claro que comemoramos barcelonicamente, espartanamente.

O couchsurfing.org (couchsurfing, traduzido do inglês, significa literalmente “surf de sofá”) é um site que hospeda e agencia o perfil de pessoas cadastradas no site e interessadas em hospedar viajantes ou serem hospedadas gratuitamente por pessoas de outros lugares do mundo também cadastradas. Há formas de conferir credibilidade aos usuários, por meio de testemunhos de quem viajou ou recebeu viajantes sobre os usuários com quem se relacionaram. O Fatício já hospedou muita gente e já foi acolhido diversas vezes desde 2007, quando abriu seu cadastro no site. É quase um membro honorário. Eu não, nunca pude hospedar ninguém (apesar da vontade) e tive minha primeira acolhida (graças ao Fabrício) apenas ontem, pela Eva e o Cláudio, recém-cadastrados e cujos primeiros hospedados em sua casa fomos nós. E que maravilha tem sido! Estou escrevendo da casa deles agora mesmo, e combinamos desde o início que passaríamos duas noites e seguiríamos viagem.

Pitucho, o gato japonês, com sua refeição matinal: um pardal morto-matado. E laser nos olhos.

A Eva e o Cláudio se conheceram no Japão, onde moraram durante muitos anos, voltando para o Brasil no ano passado junto com o piá da Eva (seu filho Calil) e o gato Pitucho. Nenhum dos dois é natural de Ponta Grossa (ela é MT, ele é SP). Nos fizeram sentir extremamente à vontade na casa deles (que é também seu espaço de trabalho, com e-commerce), preparando refeições gostosíssimas (anoto aqui as anchovas pra lembrarmos no futuro), e conversando muito sobre Japão, economia, internet, tecnologia, gatos, um pouco de bicicleta, sempre com conhecimento e senso crítico. Sinto que preciso renovar a lingua portuguesa pra dar conta de agradecer algumas dessas pessoas que tem nos ajudado no caminho, os superlativos não bastam e são meio baba-ovo demais. Fora a identificação que temos tido com algumas dessas pessoas (tem sido o caso com o Cláudio e a Eva) que nos deixam saudosos antes mesmo de partirmos.

Fatício e Cláudio em Ponta Grossa-PR

Amanhã acordaremos as 5:50, tentaremos sair as 7:00 em direção a Prudentópolis, a quase 100 km de Ponta Grossa.

 

 

Mais ou menos sobre os silêncios e o pensamento na estrada

Todo ciclista de alguma forma já está acostumado a conviver com os próprios pensamentos. E vejo como lidar com os próprios pensamentos é e sempre foi uma questão complicada pra muita gente, até um tabu pra muitos grupos (ou qualquer pessoa que veja sua individualidade ameaçada ou castrada por tradições, contratos sociais ou de trabalho, idéias fixas). Minha tia Miriam do Rio de Janeiro, alguns meses antes de eu partir, me ligou aflita quando soube da viagem: “Meu filho, olha, você leu muitos livros, fez universidade, é artista, tem todo um universo interior. Eu sou uma mulher prática! Nem sei o que significa subjetividade. Eu conheço as coisas como elas são, não pela teoria. Converso com as pessoas, já vi muita coisa por aí. O mundo é perigoso, toma cuidado!”.

Bom, eu não diria que em quase 30 anos de vida não tive ainda nenhuma experiência prática (até já plantei feijãozinho no algodão, foi mágico!). Mas uma viagem de bicicleta como a que estamos fazendo é uma experiência intensíssima nos dois sentidos: na tal da vida prática, exterior, e na também tal da vida interior. Passam-se horas em silêncio, durante as pedaladas na estrada, e também depois. O próprio entendimento entre eu e o Fabrício, uma necessidade constante de equilíbrio mútuo, talvez aconteça mais durante os silêncios do que nas conversas. Uma viagem de biclicleta em grupo não garante altas conversas; quem vê o silêncio como algo incômodo, a ser evitado a todo custo, como sintoma daquele vazio que muitos querem longe, poderia ter aí um grande problema. E carregar na cabeça alguma questão pessoal mal resolvida, como uma frustração qualquer, um arrependimento, uma memória persistente, pode ver essa questão pesar mais e mais ao longo da viagem.

Durante os 6 meses que antecederam nossa partida, tentei ter clareza de que deveria sair de São Paulo sem nenhum vínculo que não fosse o estritamente afetivo, com minha família e amigos (essa foi uma resolução pessoal minha, não é uma exigência pra qualquer um que queira viajar um bom tempo de bike). Nenhum contrato, nenhuma questão pendente, nenhum rolo amoroso mal resolvido, quite com a vida e totalmente aberto para o que poderia vir a acontecer. E já na viagem, a impressão que tenho é que a cada dia devemos dormir quites, zerados com as questões do dia que está acabando. Não há nada mais urgente aqui do que o próprio momento em que se está, e as condições desse momento.

Pedalaremos uma média de 5 a 6 horas por dia, de 4 a 5 dias por semana, durante nossa viagem. Estamos descobrindo aos poucos uma certa dinâmica do corpo na estrada: na primeira hora em geral rendemos bem, e isso pode se estender pra segunda hora; da terceira em diante, dependendo da intensidade da pedalada já feita, o cansaço já aparece, e falta ainda algum tempo pro almoço (que de fato renova as energias, o ânimo e as pernas pra chegarmos ao destino do dia). Confesso que minha cabeça pensa num volume alto quase o tempo todo, e imagino que o Fatício, cabeçudo como é, também. Se nos momentos de cansaço na estrada somos assediados por pensamentos que nos puxam pra baixo, tem ficado claro como o rendimento da pedalada diminui, como também a atenção à estrada que deve ser constante. Nessa hora, ou convém ouvir uma música (se a estrada tiver um acostamento generoso e tráfego tranquilo), ou parar, ou comer paçoca, mascar algo que dure na boca, ou contar com o acaso que tem nos brindado com encontros quase sempre oportunos: gente que pára o carro pra conversar conosco, uma buzinadinhas camaradas que as vezes nos reconectam, um rio que cruza a estrada e paramos pra nadar, beber água de fontes, tirar foto, ou dar atenção pra um gavião pagando de gatão no meio da pista.

Parada nossa e do caminhão da empresa que faz asfalto no Rio Verde

Os dois cavaleiros que foram de cavalo do Paraná até o Santuário de Aparecida do Norte, e pararam pra conversar conosco na estrada e dar força

Tenho me lembrado bastante de uma frase do Deleuze (filósofo francês da segunda metade do século XX): ˜É preciso pensar com o que fortalece o pensamento, não com o que o debilita˜. Nem sempre isso é possível, mas fica como norte pra prática do pensamento, que vai ser tão constante e intenso pra nós quanto pedalar.

Pra evitar esboçar em mim um novo guru de auto-ajuda, queria começar o relato objetivo dos últimos dias de viagem, mas o Fatício já fez isso (falou de Sengés), então hoje só fiz filosofar mesmo. Só não queria deixar de agradecer ao povo de Sengés que conhecemos, e por quem guardarei muito carinho. E as moças de Piraí do Sul, que na conversa fizeram nossa digestão de feijoada ficar mais leve, beeeijo procêis.

Affonso

 

 

Sengés

Acho que já dava saber de antemão que teríamos muitas situações definidas por contingências. Ou seja, não dá pra prever tudo, mas todos os dias precisamos beber água, comer, dormir etc. Sempre que der, precisamos tomar banho, acessar internet, dormir confortavelmente. Sempre que houver a oportunidade, vamos nadar em alguma cachoeira, conhecer alguém interessante, aprender um pouco mais de bicicletas e sobre um Brasil distante do nosso cotidiano.

Antes de sair em viagem, eu nunca tinha ouvido falar em Sengés, cidade do noroeste do Paraná, vizinha de Itararé, esta última no estado de São Paulo. Não soube da cidade nem em 2010, quando ela passou por uma imensa inundação que matou quatro pessoas e colocou debaixo d’água praticamente todo o seu centro. Nunca ouvi sobre suas cachoeiras e suas paisagens naturais. E talvez não descobriria tudo isso se não fossem a viagem e algumas pessoas que conhecemos lá.

Em Itararé, onde almoçamos, havia fotos das cachoeiras de Sengés num restaurante. Chegamos à cidade com Sol a pino. 38.9 graus era a temperatura que marcava no GPS. Fomos à biblioteca, onde é feita a gestão de cultura (pelo que entendemos, a cidade não conta com secretário de esportes, e essa secretaria é então cuidada pela de cultura). Lá, a moça nos encaminhou para o ginásio da cidade, onde o Edes, que administra o espaço, nos recebeu e nos alojou num lugar ao lado do banheiro e da área pra tomar banho dos vestiários. Tínhamos o cadeado e podíamos deixar nossas coisas, o que tornava possível passear pela cidade. Tínhamos banho e onde dormir. Apesar do cheiro de urina, era mais do que o suficiente.

Já no primeiro dia, conhecemos a cachoeira do navio. As fotos falam por si.

Primeira cachoeira, embaixo da ponte.

À noite, fomos ao trailer do Dalmar, cujo filho, Adams, é um ciclista que gosta muito de mountain biking. Não só recebemos lanches de graça (nesta e nas duas noites seguintes), como fomos convidados a fazer uma trilha pra cahoeira mais famosa da cidade: véu de noiva. No dia seguinte, Affonso estava com a perna um pouco dolorida e resolveu ficar. Eu segui de bicicleta com Adams, Heron e Bruninho, para uma trilha de 27km até o canion mais alto da cidade e mais 5km até a cachoeira (passando por outra, menor, no caminho). Novamente, as fotos falam por si.

Bruxa de blair feelings

Soja em cima do canion

A cachoeira menor

Canion

Véu da Noiva, visto de frente

Tomando ar

Preparando o salto

Começando a viagem

A disponibilidade desses dois caras, Adams e Heron, fez com que ficássemos um total de três noites em Sengés. E tínhamos trilhas e cachoeiras pra ficar pelo menos mais uma semana. O que mais me impressionava era a empolgação de ambos em revelar o que só eles sabiam. Visitamos algumas áreas que nem os pais dos rapazes conheciam. E tudo isso pelo puro prazer de compartilhar conosco o que sabem e participarem um pouco da nossa viagem. Minha gratidão pelo que fizeram é infinita.

Os muleque de Sengés

E foi com o Heron que conversei mais sobre as questões políticas da cidade. Embora seja um pequeno paraíso, a prefeitura de Sengés não sabe explorar  e conservar as paisagens da região. A cidade é atravessada por caminhões de transportadoras, sobretudo por caminhões da Sengés Papel e Celulose, empresa que joga diuturnamente uma fumaça branca no ar da cidade, que dizem ser de enxofre. Ao lado do centro, é muito claro e óbvio que o impacto ambiental é brutal, sobretudo para os moradores. Há relatos de que Sengés tem 10 vezes mais incidência de câncer na cabeça entre seus habitantes. Ouvi também que a empresa é dona a área onde se concentra boa parte da mata ciliar das cachoeiras e rios da região e, embora tenha havido um caso recente de inundação, ela segue derrubando a mata nativa para plantar pinho. É um caso seríssimo de saúde pública e um exemplo preciso do que acontecerá quando nosso tão desrespeitado código florestal for flexibilizado. Contradição tão clara: uma cidade tão preciosa por seu bens ambientais e tão atacada 24h por dia por quem domina o poder econômico (com braços políticos e no judiciário).

Vista de Sengés da estrada.

15 km de Sengés

Se existe algo como a cetesb (ou ministério público mesmo servia) no Paraná, ela certamente faz vista grossa pra essa aberração. E a vista é bem grossa mesmo, porque a fumaça é visível a 15 km de distância, como nós pudemos fotografar.

São Miguel Arcanjo, Capão Bonito e Itapeva

 DOENÇAS – Há alguns anos, numa época em que minha cabeça criava trocadilhos e brincava de pensar paradoxos quase todo dia, lembro que o Giovanni (amigo da época do curso de artes plásticas) veio com essa: “Li na internet que existe uma doença relacionada a quem cria mais de 3 ou 4 trocadilhos por dia”. Beleza, então eu era doente, tava sabendo desde aquele momento, e fiquei até feliz em saber da doença.

Tô contando isso pra introduzir um desses paradoxos que desenterrei da memória durante os dias em São Miguel Arcanjo, onde acabamos ficando  5 dias por conta de vários problemas de saúde que tive e fizeram a gente parar. Se eu penso: “A sorte tem muito azar” e na sequência: “O azar tem muita sorte”, ao fim me dá a impressão que o azar leva uma pequena vantagem. Mas isso é só um jogo de linguagem.

O fato é que ficaríamos só uma noite em São Miguel, na casa da Ne, mãe de uma ex-colega de trabalho. Na manhã seguinte à nossa chegada, ao acordar e pensando já em sair, uma dor entre a cintura e a coxa da minha perna direita que já existia desde Pilar do Sul mas não chegou a comprometer nada, se impôs e me fez mancar o dia todo. Adiamos então nossa partida. Fui ao posto médico e me disseram que estava com tendinite, uma inflamação do tendão. Recomendaram uma semana de repouso, injeção no bumbum e uns remédios anti-inflamatórios (não tomo remédios há anos, mas tomei).

Ficamos mais uma noite na Ne, e já no dia seguinte, além da dor da tendinite, acordei com o pulmão arranhando por causa de uma crise de asma súbita, e dez minutos sob o sol causaram uma reação alérgica horrorosa na pele do corpo todo que só está começando a melhorar agora, após quase uma semana do primeiro diagnóstico. Tanto a asma quanto a reação alérgica ao sol foram reações colaterais ao remédio anti-inflamatório. Até uma médica, a quarta que consultei durante essa saga da tendinite (na verdade, foi uma bursite) me disse: “Menino, que azar..”

O último episódio das doenças (espero eu) foi o da minha bicicleta; afinal, numa viagem como a nossa, o ciclista e a bicicleta são uma coisa só, e não duvido que os problemas com a minha corrente, além de terem me obrigado a gastar muito mais energia nas pedaladas do que eu deveria, foram parte da causa da minha bursite. No terceiro dia em São Miguel, levei a bicicleta pro Magrão, um mecânico local, dar uma avaliada. Ele resolveu a questão: a corrente que eu estava usando era pra um câmbio de 21 marchas, e eu estou usando 27 marchas. Isso explicava muita coisa, e o que mais me intrigava foi como que esse detalhe crucial passou despercebido por mim e pelo Fabrício na hora da compra da corrente, pelo mecânico que montou minha bicicleta em São Paulo (desatenção ou negligência), e também pelo Airton (o mecânico paraplégico de Pilar do Sul).  Comprei uma corrente nova e pela primeira vez senti como pedalar naquela bicicleta deveria ser desde o início; a diferença na pedalada, na troca das marchas, no esforço, eram brutais. Se nos primeiros dias de viagem cheguei a pensar (até escrevi aqui no post) que algum sofrimento faz parte da viagem, hoje eu diria de outra forma: há sim muito esforço, mas se há sofrimento há algum problema. Mesmo as inúmeras subidas, que nos primeiros dias me faziam pensar no Sísifo o tempo todo (Sísifo é aquela figura mitológica condenada a carregar uma pedra montanha acima pela eternidade), hoje, com a bicicleta redondinha, e mesmo com quase 30 quilos de bagagem, são só uma questão de paciência e perseverança.

HÉLIO E VANDA de SÃO MIGUEL ARCANJO – Logo ao chegarmos em São Miguel, antes mesmo de chegarmos na casa da Ne, fomos abordados na rua por um ciclista muito simpático e todo equipado: “Opa, cicloturistas! Vindos de onde?”. Era o Hélio, que trabalha numa loja de conveniências/padaria em São Miguel com a mulher Vanda, e organiza viagens de bicicleta com um pequeno grupo de ciclistas de São Miguel. O Hélio fez questão de nos mostrar os roteiros ciclísticos que já realizaram, apresentar o grupo de mulheres ciclistas de São Miguel (7 ou 8 mulheres, incluindo a Vanda), e de nos dar todo tipo de assistência durante nossa estadia: nos levou até a casa da Ne, me levou até o posto de saúde, ofereceu café da manhã, sugeriu o mecânico pra bicicleta. Essa figuras, que aparecem do nada e tem sido até constantes na nossa viagem, não dão chances pro azar levar vantagem.

SEU BENEDITO/D. ANA/EVANDRO de S.Miguel ARCANJO – Após quatro noites dormindo na Ne, muito mais do que o previsto inicialmente, conseguimos uma nova hospedagem em São Miguel para passarmos a última noite antes de retomarmos a viagem rumo a Capão Bonito. E foi num lugar intrigante: o contato eram os pais do Éder, amigo de amigos meus da Usp. No telefone, a dona Ana e o Seu Benedito nos orientavam para que fossemos pra perto da fábrica de chá. Fomos e ficamos rodando ao redor da fábrica, até descobrirmos que ele moravam dentro mesmo do terreno da fábrica da Yamamotoyama, a mesma marca de chá verde e ban-chá que costumo tomar no dia-a-dia em São Paulo. Era domingo e a fábrica não estava funcionando; o Seu Benedito era o administrador da fábrica, bebia diariamente o chá pra avaliar se a qualidade e o sabor estavam de acordo com os padrões da marca. Foram extremamente gentis conosco, nos deram almoço, jantar, café da manhã, atenção e um quarto pra dormir.

A IMAGEM DO CICLO-VIAJANTE E DO CICLISTA – Nos dias de repouso em São Miguel pudemos reparar na enorme diferença  de abordagem das pessoas locais  em relação a nós quando estamos com a bicicleta carregada com as bagagens (alforjes, barraca, sacos de dormir, etc), e quando estamos pedalando descarregados. Como disse o Fatício, há algo de performático na figura do ciclo-viajante, e que inspira imediatamente qualquer pessoa a se perguntar (ou a nos perguntar): “Vem de onde?”, “Vão pra onde?”, “Precisam de ajuda?”, “Tão pagando promessa?”. E outras: “Ai, que dor nas perna!”, “Que coragem!”, “Soorte procêis!”. A comunicação com praticamente qualquer pessoa é imediata, não parece haver qualquer julgamento em relação à nossa condição social.  Mas se estamos pedalando sem as bagagens, paradoxalmente me sinto mais vulnerável: nos tornamos de certa forma alvo de olhares que ou censuram, ou invejam, pois de repente somos os caras com as bike boa, da hora, toda incrementada. Nas estradas os caminhoneiros dão então menos atenção a nós, e isso é sempre um grande risco. E, de modo geral, toda pergunta quanto a nossa origem ou destino cessa nas pessoas com quem cruzamos, deixamos de ser viajantes.

RETORNO À ESTRADA, RUMO A CAPÃO BONITO – Após os 5 dias parados em S. Miguel, retornamos à estrada em direção a Capão Bonito. Não sei se pela enorme vontade de voltar pra estrada, ou pelo vento da manhãzinha que é sempre bom, ou por que finalmente minha bicicleta estava rodando como deveria, todo o caminho até Capão Bonito foi uma delícia de ser percorrido, muito leve pra mim. Chegamos em Capão Bonito ao meio-dia, almoçamos na praça central, e em seguida fomos buscar uma bicicletaria pra tentar arranjar um pézinho/descanso pra bicicleta do Fatício. A dona da bicicletaria era a Lurdes, mais uma dessas figuras partidárias da nossa sorte. Enquanto o Fatício resolvia com o mecânico as questões da bicicleta dele, eu conversava com a Lurdes e a Dani (filha, que também atende na loja) sobre nossa viagem, até que perguntei sobre um lugar baratinho pra passarmos a noite. “Humm, deixa ver.. Tem aquela pensãozinha aqui atrás. Devem cobrar uns 20 reais.” Comentei que 20 era muito pra nós, que não fazíamos questão de conforto e só passaríamos aquela noite na cidade, partindo na manhã seguinte. A Dani comentou com a mãe: “Imagina mãe, se eles forem gastar 20 reais todo dia até chegar no Canadá, aí eles tão lascado”. Daí ligou um motorzinho interno na Lurdes, que pegou o telefone e ligou pro Secretário de Esportes e Cultura de Capão Bonito. Em poucos minutos de ligação, ela nos arranjou um contato com o Secretário, uma reportagem no jornal local, um quarto de hotel pra dormirmos (com café da manhã incluso), e à noite nos preparou uma janta ótima.

ITAPEVA – Acordamos 5:30 no Hotel Regina em Capão Bonito, fizemos a consagração do estômago no café da manhã bem servido do hotel, e partimos umas 6:30 rumo a Itapeva. O cenário ao longo das estradas é quase sempre o mesmo: quilômetros e mais quilômetros de plantações de eucalipto ou pinho, soja, e eventualmente milho. Os grãos, sempre transgênicos, e o eucalipto e pinho sempre pra corte. Quase não havia mata nativa nas laterais das estradas. Faltando alguns quilômetros até chegarmos em Itapeva, paramos em Itararé pra almoçarmos, e seguimos adiante. Chegando em Itapeva umas 14:00, fomos direto procurar a Secretaria de Esportes local, pra buscar apoio. Não vou negar que mais uma vez conseguimos hospedagem, mas foi osso: esperamos quase duas horas o Secretário de Esportes local chegar, mais meia hora até ele nos chamar na sala dele, fazer todo um discurso politiqueiro, sobre as glórias do time de futsal de Itapeva, e pra falarmos deles nas próximas cidades, etc. Acabamos sabendo que poderíamos dormir numa casa cedida ao time de futsal da cidade, mas para isso tivemos que esperar mais quase uma hora até o secretário liberar o Luís (técnico do time de futsal) da sala dele pra que nos mostrasse o caminho até a casa. Chegando lá, uma casa mais ou menos sucateada, inteira cheirando a mijo, um banheiro que não era limpo há muito tempo, mas que ainda assim serviria pra passarmos a noite.

Mais informações, aguarde o próximo versículo…

Airton

Em Pilar do Sul, cidade que já deixamos pra trás, enquanto o Affonso estava acamado, fui tentar resolver o problema da corrente da bike dele. Coisa bem estranha, uma corrente nova que estava bastante travada e não girava em alguns elos.

Nessa busca aleatória de bicicletarias, fui parar na casa do Airton. O rapaz trabalha num quintal (tem até uma churrasqueira), com um monte de bicicletas encostadas umas nas outras. Lá no fundo, é possível ver um pequeno pomar, e, antes dele, um imenso latão onde ele empilha peças velhas de bicicleta.

Airton trabalhou pelo menos uma hora na corrente do Affonso. Lubrificou com óleo singer (que eu sei que é inapropriado, mas era o que tinha), alargou os elos travados, desmontou os pneus pra mim e eu coloquei as fitas anti-furo. Ele montou tudo de volta. Ao final deixou claro: “não tá 100%, mas eu não tenho uma corrente nova aqui, então é o melhor que eu podia fazer”.

Enquanto estávamos juntos, Airton recebeu cerca de 12 clientes. Quase todos moleques, aos quais respondeu igualmente: “as peças não chegaram ainda, distribuidor vem mais tarde, passa amanhã faz favor”. O interior tem essa coisa de uma outra velocidade.

Até aqui, nada de novo no descritivo. Mas o que é curioso dessa experiência foi ver toda uma oficina de bicicletas adaptada a um mecânico com deficiência física. Se não me falhe a memória do que Airton me contou, ele sofreu um acidente de carro aos 19 anos e perdeu o movimento das pernas. Ficou três anos sem fazer nada e aos poucos começou a achar coisas de que gostava de fazer.

Contou que fazia pipas, papagaios, carrinhos de rolemã pra molecada e foi nesse momento em que ele começou a arrumar algumas bicicletas. Pouco a pouco, a molecada começou a trazer mais bikes e ele sacou que dava pra ganhar alguma grana com aquela ocupação. Há seis anos, ele é mecânico de bikes.

Enquanto falava da sua história, Airton foi especialmente enfático no episódio da compra mínima. Pra passar a ter uma bicicletaria, é necessário ter estoque. A primeira compra para estoque tinha que ser de mais de 360 reais e ele comentou do apuro que passou porque não sabia se faria suficientes trabalhos pra pagar a soma. Ao fim, ele conseguiu pagar a primeira compra e desde então vem mantendo essa oficina que é bastante conhecida em Pilar do Sul.

Eu não queria fazer juízos sobre essa história nem tirar conclusões. Queria só ressaltar uma cronologia: uma pessoa que perde o movimento das pernas por conta de um acidente de carro e passa a arrumar bicicletas, que ele próprio nunca poderá usar.

Pilar do Sul, insolação, brilhos no olhar e umas reflexões soltas

Poucas semanas antes de partirmos pra viagem, num dos encontros que tivemos com o Arthur Simões (amigo ciclista que realizou uma volta ao mundo: http://pedalnaestrada.com.br/), a Juli, namorada do Fatício, reparou sobre ele: “O olho brilha. Parece que tá vivo o tempo todo˜.

Nào é minha intenção idealizar a viagem de bicicleta: há muito esforço, as vezes (ou muitas vezes) sofrimento mesmo. Uma das primeiras características desse tipo de viagem que reparamos após só 2 dias de pedaladas é que aproximadamente 70% do tempo da viagem (na estrada) será gasto em subidas.

Que isso não desencoraje ninguém a fazer uma viagem dessas. Nesses primeiros dias, talvez a experiencia mais intensa que tivemos foi comer e beber água (e intensidade é a palavra pra essa viagem, pro bem ou pro mal). Poucas vezes um gole de água foi tão cheio de sabor; pela maçã que comemos na estrada eu largava o paraíso fácil fácil; e a banana que rachamos, apesar de eu ser mó hetero, nunca entrou tão bem no meu corpo (perdão…).

Há uma revalorização de quase tudo, e ganha mais valor o que é pra nós o essencial: água, comida, as bicicletas, o Fabrício pra mim (e talvez eu pra ele), a bagagem e equipamentos, os lugares, as pessoas e nossa relação com elas. E, claro, as breves mensagens que trocamos com nossa família e amigos são sempre fortes emoções, nível aguenta-coração.

Hoje o Fatício enviou por mim pelo correio quase 6 quilos de coisas que me pareceram menos necessárias, pela urgencia de diminuir o peso excessivo da bicicleta: um xilifone infantil pra arrasar no Caribe, três livros, umas bugigangas, e o que me pareceu mais sintomático: as chaves de casa. Da tríade de ferro que acompanha o corpo de todo morador de uma cidade (chaves, carteira com documentos e grana, e o recente celular, que grudou e não larga mais), superei as chaves, e até o celular já tá mais ou menos condenado.

180 km de pedaladas em dois dias, após semanas de correrias em São Paulo por bancos, bicicletarias, hospitais para vacinas, lojas, entrega da casa alugada (um stress violento), e horas, horas de pequisa na internet, é claro que o choque viria. Na noite de ontem, após um banho de água morna, troquei o chuveiro pra “inverno” e deixei a água bem quente cair nas pernas pra aliviar a fadiga muscular. Foi ótimo, fiquei até orgulhoso que eu já sabia de algum jeito me cuidar sozinho. Não durou meia hora e a temperatura do corpo subiu absurdamente. Fui dormir ardendo em febre, e acordei no terceiro dia com 39,5 C de febre. Tivemos que tirar o terceiro dia pra repouso (por isso tá dando pra escrever esse texto). Eu já havia tido uma leve insolação na primeira noite, que não me impediu de nada.

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Provavelmente, se não fosse pela ajuda do José Eduardo Paes, que cruzou de carro conosco na estrada entre Piedade e Pilar do Sul, e em Pilar nos reencontramos e ele fez questão de pagar espetinhos de frango, refrescos, e uma noite num hotel da cidade, eu estaria num perrengue grande por conta da insolação súbita. Queria agradecer o Eduardo aqui: seu gesto é do tamanho da nossa gratidão, obrigado mesmo.

O viajante de bicicleta em geral inspira a solidariedade das pessoas, talvez até mais do que um caminhante, que pode inspirar medo ou receio de que seja um louco, perdido. Tem sido comum encontrarmos pessoas dispostas a nos ajudar, ou que param pra conversar, perguntar pra onde vamos, de onde estamos vindo. E é provável que a frase mais constante que falaremos ao longo da viagem para as pessoas que encontrarmos será: “voce pode me dar um pouco de água?”. Pra mim, não existe pedido mais “humano” que este, e as grandes cidades (claro que penso em São Paulo) inspiram as pessoas a negarem esse pedido; negar água é ao mesmo tempo a expressão mínima e máxima da maldade com o outro. Espero não passarmos por isso.

Então o que faria o olho do Arthur brilhar com tanta intensidade, e que também pude perceber no olhar de duas outras pessoas que rodaram o mundo de bike, o Argus e o Antonio Olinto? Vou chutar: saúde talvez (física, mental, espiritual); ou porque a atenção deve estar alerta a cada instante, à altura do momento, e isso lhes deu a qualidade de uma “presença no presente” pouco comum; ou porque o viajante de bicicleta não é um ser totalmente autônomo, depende ainda muito de outras pessoas pra continuar, e após anos de viagem esses olhares carregam esse reconhecimento; ou porque praticamente todas as escolhas deles durante anos foram definidas por eles mesmos, o que me faz supor que nos momentos em que nos encontramos com o Arthur, o Argus ou o Olinto, eles estavam lá porque queriam estar. Posso ficar supondo por horas sobre os motivos dos olhares deles serem desse jeito, mas o resumo é que, mesmo com todo o cansaço de uma viagem dessas, a escolha deles (e agora também nossa) pelas nossas liberdade e vontade, e acima de tudo, pra viver o que se espera da própria vida, devem mesmo revalorizar o olhar, que, dizem, é a janela da alma.

Hoje, por conta da febre, meu olhar tá murcho e cinza. Tentarei melhorar.

Affonso