Quando estive em São Miguel Arcanjo, na casa da Nê Balboni, tentei publicar esse texto numa revista de São Paulo. Acabou não rolando, então publico aqui, com um pouco mais de riqueza de detalhes que o texto original. Fotos de arquivo, minha e da Jurema.
Matias e Abaeté
O ano é 1969. Matias, 24 anos, acordou para mais um dia de muito trabalho. As semanas anteriores haviam sido pesadas, verificando cada detalhe da ação e definindo, tão cifradamente quanto possível, o grupo mínimo necessário. O banco ficava na avenida Paulista, seu grupo não estava muito longe dali, e a polícia estava cada vez mais atenta a esse tipo crime. Na sua cabeça, a certeza de que aquela seria uma entre poucas ações que dariam a base necessária para a retaguarda do comando. Matias lembrava de São Miguel Arcanjo, onde nascera, e onde sua família guardava uma boa quantidade de terras. Lembrava do sertão de sua cidade, onde cogitava treinar um grupo que fizesse seu papel histórico naquele canto do estado. Na mão, um revólver que mais estalava do que atirava. Na ação, nem todos os apelidos eram conhecidos, nem ele próprio os queria saber. Junto dele, estava Manoel – não o apelido, mas o nome – que será importante testemunha da ação.
O ano é 2012. Abaeté, 27 anos, acordou tarde, de uma noite com algum vinho e toda sorte de acepipes naturais: cevada, feijão, pepino, bolo de mandioca e ovos. No café, frutas, um violão, pão caseiro, sucos. Muitas pessoas no sítio UOAEI. Nomes de índios entre todos os amigos: Ungará, Jacira, Jurema, Itaberaba… Preparam-se pra uma expedição ao Parque do Zizo, reserva particular de Mata Atlântica da família de Abaeté, situada em São Miguel Arcanjo, parte da mata remanescente onde também se encontra no Parque Estadual Carlos Botelho. Uma noite ao lado da segunda (ou seria a terceira?) maior cachoeira do estado de São Paulo. 5 pessoas num fusca até a entrada, mais 5 kilômetros de caminhada mata a dentro. Chega uma bicicleta e, em cima dela, Manariru.
Na saída, Matias não está tão tenso quanto esperava. Sua primeira ação poderia ser a única, dependendo dos desígnios da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele sabia que por nada deixaria de fazer o curso de arquitetura e que tudo que havia aprendido na engenharia daquela universidade murada seria útil de alguma forma, até que pudesse seguir o que sentia ser seu talento verdadeiro. Até lá, as armas foram sua escolha para combater um inimigo real, concreto, que parecia estar em todo lugar, no olhar dos civis que os apoiavam, nas batidas em que se cobrava a carteira de trabalho, na ostensiva repressão a tudo que fosse distinto das rígidas, e tantas vezes sem sentido, determinações militares. O fusca seguia na direção do banco escolhido, mas o barulho de sirene faria todos saírem do carro para se proteger. Do carro da polícia, grita Sérgio Fleury, que já os patrulhava há mais de três dias e os seguia desde que Matias entrara no carro.
Abaeté pergunta se Manariru tem experiência com acampamentos, se tem disposição física para passar uma noite desconfortável. Explica que a experiência será de muito silêncio, introspeção. O dono da bicicleta não titubeia em dizer que está preparado, que quer se juntar ao grupo e que talvez faça um relato para a revista da capital sobre a experiência. Abaeté então lhe empresta um saco de dormir e uma blusa. A bicicleta vai na frente, o fusca parte depois de 15 minutos. São 12 kilômetros até a entrada do Parque do Zizo, que está fechada (a chave ficou com o tio Chico, que não estava na cidade). Todos, do fusca e da bicicleta, se reencontram e juntos pulam o portão do parque, confiantes na experiência de Abaeté e na certeza de que aquela é uma reserva particular e que um dos herdeiros liderava o grupo.
Ouvem-se muitos disparos. Um deles, de fuzil, acerta Matias, mas ninguém pôde saber onde, porque o caixão de zinco com seu corpo chega lacrado. Agonizante, Matias é resgatado e jogado no carro da polícia como indigente. Levado até o DOPS, já não pensava mais na infância, nem na arquitetura, muito menos em São Miguel Arcanjo. Sabia que havia a quem proteger, que não lhe dariam tratamento e, àquela altura, só queria algum fiapo de esperança em que acreditar para sobreviver. Mas se a perda de sua vida fosse necessária para poupar outras, estava disposto a entregá-la, mesmo que achasse essa a situação mais injusta que poderia conceber. No DOPS, a primeira hora de sangramento foi infinita. Colocado em uma posição em que podia ver o próprio sangue, pediam-lhe nomes do grupo e ele não os sabia. Perguntavam de pessoas que ele não via há anos e apanhava ao negar cada pergunta.
Nos primeiros passos, o grupo descobre que esqueceu a comida. Somam-se os víveres e temos um caixo de uvas, um saco de castanhas do pará, um pão grande e três cenouras para 6 pessoas e três refeições. Tudo é racionado e o que era silêncio de instropeção, vai se tornando silêncio de quem guarda energia. A natureza completa o banquete com bananas verdes. Todas as relações são ritualizadas. Para começar a caminhada, dá-se as mãos em roda. Para acender a fogueira, dá-se as
mão em roda. Para ir para a cachoeira, todos devem dizer sim. Frente ao imenso jorro de água, distribuído em diversas quedas, o grupo não se contém nos gritos de alegria. Tiram as roupas, nadam, dormem ao Sol, fotografam-se, banham-se e dão-se as mãos, em roda.
Duas horas depois, Matias entra numa espécie de nirvana. Seu pensamento persiste, embora seu corpo já não responda a mais nada. Rubens Tucunduva, delegado que o interrogava, já tinha desistido de jogar-lhe água fria e pede ao cabo que desse um banho no corpo e que o levasse ao Hospital das Clínicas. Matias ouve toda a conversa e pensa que chegou o momento de sobreviver, de talvez ir para Cuba, mas antes passar em São Miguel, abraçar a mãe e os irmãos, explicar por que não entrou em contato nos últimos dois anos, dizer que era arquitetura (já sabia!), que tinha tido amores e que teria outros, que não gostava do cheiro de pólvora, que não vendessem as terras, que queria ouvir os muriquis mais uma vez, que o Lamarca era mesmo aquilo que imaginavam, que esperassem um pouco mais e estivessem prontos porque o mundo não podia ficar daquele jeito pra sempre. Não precisava mais da arma que não atirava direito. Nunca quis matar. Nunca quis morrer.
À noite, fogueira alta, e um grande ritual de benção de objetos pela natureza. Cortam-se folhas de bananeiras, arma-se uma rede e todos encontram seu lugar. Abaeté sabe que aquilo é um oásis, mas que não é mantido com pouco esforço. Tem a certeza de que a própria ocupação da área já era uma posição política. No dia seguinte, mais um banho em nova cachoeira, mais mãos dadas em roda, fotos e a última refeição: 3 uvas, 4 castanhas do pará, 5 pedaços pequenos de cenoura, algumas bananas verdes cozidas e 50 gramas de pão por pessoa. Todos sabem que dormiram mal, que comeram pouco, mas ninguém reclama.
Os legistas Antônio e Irany recebem o corpo de Matias, que fora encaminhado ao Hospital das Clínicas já desfalecido e que está sob a responsabilidade do IML. Causa mortis: tiro de fuzil. Havia, no entanto, outras escoliações, que Antônio advertiu Irany para que não descrevesse, porque não teriam causado a morte. Na ficha, mais informações sobre sua vida do que Matias jamais teria pensado. Já tinham seu nome, sua cidade natal, os nomes dos integrantes de sua família e agora adicionavam o dia em que expirou. Lacrado o caixão de zinco, sua mãe o recebe em São Miguel Arcanjo. O soldado se comisera da mãe que chora, mas não deixa de cumprir a ordem de avisar que aquele era um ladrão, que fora morto como um meliante porque mereceu, que assaltava bancos e que representava um perigo. Diz que não acredita que a mãe o havia educado assim, mas que não pode fazer nada se o indivíduo é ladrão.
Na volta, os 5 kilômetros finais parecem ter dobrado de tamanho. Os roncos dos estômagos faziam um coro mais alto do que os 600 muriquis remanescentes no parque. Abaeté chega ao portão trancado que haviam pulado. Antes de sair, pede que Manariru encha o cantil de alumínio que carregava. O companheiro de guerra o completa, mas não consegue fechar a tampa. Abaeté pergunta se Manariru sabe quem foi Lamarca. Abaeté explica que aquele fora o cantil de Lamarca, quando ele ainda fazia parte do Exército Brasileiro. Lamarca passou naquele mesmo parque fazendo uma das últimas patrulhas com seu batalhão, antes de desertar com a Kombi lotada de fuzis armados leves. Deixara o cantil ao avô de Abaeté, que era guarda florestal. Do avô ao tio, que partiu aos Estados Unidos, e deste para Abaeté, que o mantinha até hoje.
Somente em 1996, Matias será reconhecido como um dos assassinados pela ditadura militar brasileira. Seu nome, Luiz Fogaça Balboni, passa a figurar na página 70 do Livro dos Mortos e Desaparecidos políticos a partir de 1964. Em 1997, ou 28 anos depois da morte, Manoel Cyrillo, que estava na ação, encontra a família do companheiro de luta e explica a que horas tudo aconteceu. Os elos vão se fechando e fica evidente que o rapaz fora torturado antes de morrer. Em fevereiro de 1998, a família recebe 120 mil reais, segundo relatos no site do Parque do Zizo (ou seriam 250 mil dólares, nas palavras de Abaeté), como indenização pela morte do filho. Em 1999, um vereador de Itapetininga propõe que uma rua ganhe o nome de Luiz Fogaça Balboni. No mesmo ano, a família dele decide utilizar o valor da indenização numa reserva conservada de Mata Atlântica em São Miguel Arcanjo – é criado o Parque do Zizo (apelido de Luiz Fogaça Balboni). Em 2011, é criado o sítio UOAEI, mantido por Rafael Vasconcelos Balboni, o Abaeté, onde são desenvolvidos projetos de agricultura sustentável e defesa do Parque do Zizo.
Abaeté diz que é de paz, mas já teve que tirar peixeira pra proteger o parque contra palmiteiros. Relata que a questão fundiária e a grilagem continuam sendo constantes na região, mesmo com a criação do Parque do Zizo e com o Parque Estadual Carlos Botelho. Revolta-se contra a ignorância de quem não entende que uma árvore de palmito demora 12 anos para estar no ponto de colheita. Não se conforma que as pessoas não preocupem que os macacos Muriqui, os maiores da América Latina, estejam em extinção e que aquela área, onde residem, não seja devidamente conservada pelo Estado. Um jovem de 27 anos escolhe o caminho da aproximação do parque e isolamento da cidade, onde toca seus projetos e vivências ligados à natureza. Ao fim de seu desabafo e atento ao cantil que carregava na mochila, emenda: a luta continua, companheiro.