Poucas semanas antes de partirmos pra viagem, num dos encontros que tivemos com o Arthur Simões (amigo ciclista que realizou uma volta ao mundo: http://pedalnaestrada.com.br/), a Juli, namorada do Fatício, reparou sobre ele: “O olho brilha. Parece que tá vivo o tempo todo˜.
Nào é minha intenção idealizar a viagem de bicicleta: há muito esforço, as vezes (ou muitas vezes) sofrimento mesmo. Uma das primeiras características desse tipo de viagem que reparamos após só 2 dias de pedaladas é que aproximadamente 70% do tempo da viagem (na estrada) será gasto em subidas.
Que isso não desencoraje ninguém a fazer uma viagem dessas. Nesses primeiros dias, talvez a experiencia mais intensa que tivemos foi comer e beber água (e intensidade é a palavra pra essa viagem, pro bem ou pro mal). Poucas vezes um gole de água foi tão cheio de sabor; pela maçã que comemos na estrada eu largava o paraíso fácil fácil; e a banana que rachamos, apesar de eu ser mó hetero, nunca entrou tão bem no meu corpo (perdão…).
Há uma revalorização de quase tudo, e ganha mais valor o que é pra nós o essencial: água, comida, as bicicletas, o Fabrício pra mim (e talvez eu pra ele), a bagagem e equipamentos, os lugares, as pessoas e nossa relação com elas. E, claro, as breves mensagens que trocamos com nossa família e amigos são sempre fortes emoções, nível aguenta-coração.
Hoje o Fatício enviou por mim pelo correio quase 6 quilos de coisas que me pareceram menos necessárias, pela urgencia de diminuir o peso excessivo da bicicleta: um xilifone infantil pra arrasar no Caribe, três livros, umas bugigangas, e o que me pareceu mais sintomático: as chaves de casa. Da tríade de ferro que acompanha o corpo de todo morador de uma cidade (chaves, carteira com documentos e grana, e o recente celular, que grudou e não larga mais), superei as chaves, e até o celular já tá mais ou menos condenado.
180 km de pedaladas em dois dias, após semanas de correrias em São Paulo por bancos, bicicletarias, hospitais para vacinas, lojas, entrega da casa alugada (um stress violento), e horas, horas de pequisa na internet, é claro que o choque viria. Na noite de ontem, após um banho de água morna, troquei o chuveiro pra “inverno” e deixei a água bem quente cair nas pernas pra aliviar a fadiga muscular. Foi ótimo, fiquei até orgulhoso que eu já sabia de algum jeito me cuidar sozinho. Não durou meia hora e a temperatura do corpo subiu absurdamente. Fui dormir ardendo em febre, e acordei no terceiro dia com 39,5 C de febre. Tivemos que tirar o terceiro dia pra repouso (por isso tá dando pra escrever esse texto). Eu já havia tido uma leve insolação na primeira noite, que não me impediu de nada.
Provavelmente, se não fosse pela ajuda do José Eduardo Paes, que cruzou de carro conosco na estrada entre Piedade e Pilar do Sul, e em Pilar nos reencontramos e ele fez questão de pagar espetinhos de frango, refrescos, e uma noite num hotel da cidade, eu estaria num perrengue grande por conta da insolação súbita. Queria agradecer o Eduardo aqui: seu gesto é do tamanho da nossa gratidão, obrigado mesmo.
O viajante de bicicleta em geral inspira a solidariedade das pessoas, talvez até mais do que um caminhante, que pode inspirar medo ou receio de que seja um louco, perdido. Tem sido comum encontrarmos pessoas dispostas a nos ajudar, ou que param pra conversar, perguntar pra onde vamos, de onde estamos vindo. E é provável que a frase mais constante que falaremos ao longo da viagem para as pessoas que encontrarmos será: “voce pode me dar um pouco de água?”. Pra mim, não existe pedido mais “humano” que este, e as grandes cidades (claro que penso em São Paulo) inspiram as pessoas a negarem esse pedido; negar água é ao mesmo tempo a expressão mínima e máxima da maldade com o outro. Espero não passarmos por isso.
Então o que faria o olho do Arthur brilhar com tanta intensidade, e que também pude perceber no olhar de duas outras pessoas que rodaram o mundo de bike, o Argus e o Antonio Olinto? Vou chutar: saúde talvez (física, mental, espiritual); ou porque a atenção deve estar alerta a cada instante, à altura do momento, e isso lhes deu a qualidade de uma “presença no presente” pouco comum; ou porque o viajante de bicicleta não é um ser totalmente autônomo, depende ainda muito de outras pessoas pra continuar, e após anos de viagem esses olhares carregam esse reconhecimento; ou porque praticamente todas as escolhas deles durante anos foram definidas por eles mesmos, o que me faz supor que nos momentos em que nos encontramos com o Arthur, o Argus ou o Olinto, eles estavam lá porque queriam estar. Posso ficar supondo por horas sobre os motivos dos olhares deles serem desse jeito, mas o resumo é que, mesmo com todo o cansaço de uma viagem dessas, a escolha deles (e agora também nossa) pelas nossas liberdade e vontade, e acima de tudo, pra viver o que se espera da própria vida, devem mesmo revalorizar o olhar, que, dizem, é a janela da alma.
Hoje, por conta da febre, meu olhar tá murcho e cinza. Tentarei melhorar.
Affonso
É muito hetero.
Aí eu entro pra comentar esse puta texto bonito, vejo o comentário do Chato aqui em cima e penso: “ah, deixa pra lá”. Hahahaha.
Desculpe, Mau.
Nossa turma tende a se ligar e se incentivar a cada nova jornada, objetivo novo, ou mudança de vida, mas fora do telefone, ou do primeiro contato, a vista dos outros, estupramos o ego “from each other”, de forma a incentivar de maneira inversa, através do escárnio e da vergonha.
É o ônus que eles pagam por eu ter de defendê-los a cada “a troco de que eles tão fazendo isso” que eu escuto. É como argumentar a favor de uma idéia que a gente não pratica, só se projeta neles. Toda a frustração DO OPRIMIDO pelo sistema, e pior, Agente do sistema que nós nos trasformamos.
Aí, quando se explica a outrem, o reacinha replica: “ah, eles num tem que trabalhar” e eu triplico “então vc que é o esperto? né.. ” e por aí vai… Parece que o sistema tem seu própria defesa autônoma, os reacinhas, tentando tirar qualquer parasita ou corpo que não combine com a máquina….
Por isso:
Vão, andarilhos do mundo, cuspam na cara de ditadores, comam granola, se filiem a coisas a idéias, o seu ser vira onda, enferrujem as juntas, renovem as almas, e vivam aquilo que nunca saberemos…. good vibes seus putos
É muito poetinha.
Esse Chato não tem jeito…
Meninos todas as energias boas estão com vocês. Affonso se cuida, como disse em um post do Face, vc vai acabar virando, por isso a preocupação vai ser a mesma.
Por isso, vai um conselho de mãe (de três, alias), quando estiver febril ou com corpo muito quente, nunca entre embaixo de um chuveiro com água muito quente, isso tende a piorar.
Fabrício, cuida do Affonso!
Até mais.
Faltou o complemente, virando Irmão!
Olá! Para os madrugadores, bom dia! É o seguinte: no dia da largada de vocês saiu no “IG” que o Ronaldo “fenômeno” teria ido a uma reunião de trabalho de bicicleta (com foto e tudo). Tava engraçado, porque as bochechas não cabiam no capacete. Menino comportado esse! Abaixo:
“O Fenômeno num momento ciclista…
RG adora quem usa bicicleta como meio de locomoção (obviamente com capacete e outros artigos de proteção). Ponto para Ronaldo, o Fenômeno, portanto. É que o ex-jogador postou uma foto no twitter, nesta segunda-feira (30.01), ao chegar a uma reunião de trabalho. Sim, de bicicleta, capacete e o pacote completo.
“Bom dia galera ! A moda agora é chegar na reunião de bike!!”, escreveu. Fora que é bom para o meio ambiente e deve ajudá-lo a perder os quilinhos adquiridos nos últimos anos… Vai, Ronaaaaldo!”
Affonso, querido. Um dia, enquanto eu estava em Paudalho e vocês no fórum de cliclo-viajantes (é isso?), o Fabrício me mandou uma mensagem que escorria alegria. Na mensagem, entre muitas outras coisas, ele contava que tinha visto o brilho nos seus olhos. (#coincidência?) Teje vivo! Bjoca.
[…] lembrando de um texto dos amigos Fabrício e Affonso no blog Ushuaialaska. Eles falaram sobre a “humanidade” que […]