Arquivo mensal: março 2012

Paraguai – parte 2

No último dia em Asunción, recebemos a notícia da morte da Julie Dias. Como já foi dito, muito pouco tem sido feito na cidade para a segurança dos ciclistas, embora haja leis pra isso. E é sempre uma tristeza e um vazio grande quando vemos alguém mais próximo do nosso cotidiano tendo a vida ceifada por falta de vontade política. Colocando a culpa em quem me parecem ser os verdadeiros culpados, falta de vontade política da prefeitura de São Paulo, também do cada vez mais irrelevante Ministério das Cidades, e por fim da CET, que não autua motoristas pelo artigo 201 do CTB (1,5m de distância mínima entre carros e bicicletas). Eu sei que muito mais gente, além dela, já se foi sem sequer ficarmos sabendo, mas é traumático lembrar que aquela moça sorridente que estava em Santa Maria Madalena no décimo encontro nacional de cicloturismo não estará mais neste ano. Por conta do atropelamento, decidimos homenagear da forma como podíamos a ciclista morta.

Vida segue. Pé na estrada em direção a Encarnación, onde terminaria a nossa viagem pelo Paraguai. No caminho, a primeira cidade onde posamos foi Quiindy, em cuja prefeitura dormimos. Acontecia um aniversário de 15 anos no salão e fomos convidados pelo pai da debutante a comer com eles, tomando uma Fanta Piña (no Paraguai tem Fanta laranja, abacaxi e guaraná. Não tem fanta uva, porque foi proibido pelas autoridades sanitárias do país). Começamos a encontrar desenhos de cidades um pouco diferentes, com aquela igreja central que vemos nas cidades do interior do Brasil. Um grupo de uns 10 moleques ficaram mais de duas horas conversando conosco na sorveteria, enquanto esperávamos o fim do jogo do Olympia (um dos times mais populares do país). Fim do jogo e o guarda da prefeitura liberou que colocássemos nossas coisas numa das salas.

Levantamos cedo e seguimos o trajeto, passando por Villa Florida. Há um rio, cujo nome já não lembro e que não consta no Google maps, que cruza o centro-sul do Paraguai. Nele, existe uma praia que é bem buscada por veranistas, já que a temperatura frequentemente ultrapassa os 40 graus (como aconteceu no dia em que passamos na cidade). Como era uma segunda-feira, foi só largar a bike de canto e cair na água, com quase ninguém nas praias.

Conhecendo Villa Florida

 

Descanso pra magrela.

Almoçamos e pedi o Surubim, peixe do rio Paraná, que tanto queria comer desde que estávamos em Asunción. No restô, encontramos um casal que nos comentou sobre as ruínas jesúítcas do país. Estávamos nos aproximando das região onde aconteceram as Missões dos Jesuítas no XVIII, cujas ocupações e expulsões foram decisórias para definir as fronteiras de Brasil, Paraguai e Argentina. Terminaríamos o dia no Quartel da Cavalaria do Exército do Paraguai em San Juan Bautista. Os milicos nos cederam uma casa de hóspedes próxima do quartel, onde passamos a noite para seguir viagem. A dona do restaurante de mais movimento da cidade é uma brasileira expatriada que mal se lembrava do português. Estranhíssimo falar com alguém que é do seu país mas que não lembra a língua natal.

O terceiro dia de pedal seria ainda mais legal que os anteriores, quando rumamos pra San Ignácio e terminamos em Santa Rosa. Em San Ignácio, há um museu sobre as missões, que estava fechado quando chegamos. Terminamos visitando o museu dos heróis da cidade que lutaram na Guerra contra a Bolívia (em que, lembre-se, o Paraguai ganhou, mas perdeu território). O Affonso encontrou uma casa das vítimas do regime ditatorial do Paraguai, onde falei com um senhor que havia sido preso e torturado pelo regime de Alfredo Stroessner. O senhor me mostrou o manual de ensino das escolas das ligas agrárias, todo escrito à mão e mimeografado, com os textos em Guarani e as imagens feitas pelos próprios professores e estudantes. A região da missões foi também o principal foco das ligas agrárias no Paraguai, movimento liderado por padres jesuítas do exterior e do Paraguai e que fomentou a união e emancipação de trabalhadores locais. Esse movimento social e seus líderes foram brutalmente perseguidos pelo governo ditatorial a partir de 1976. O Paraguai já tem uma comissão da Verdade bem organizada, que inclusive é a que mantém esta casa que visitamos. Já o Brasil…

Capa do manual escolar das ligas agrárias do Paraguai.

Se liga nas ilustras e no guarani.

Saí da casa das vítimas e fui encontrar com o Affonso, ainda esperando o museu dos jesuítas abrir. Notei que meu pneu estava furado e comecei a trocar a câmara. Nisto, uma moça de moto, de nome Sara, estava na porta esperando sua mãe, pra levar de carona. Não sei bem como começou, mas sei que quando vi, o Affonso estava falando com ela. Chegou a mãe e uma hora depois estávamos com a família, compartilhando um tereré. Foi uma das tardes mais legais que passamos no Paraguai. Só sei que esquecemos um pouco da hora e às 17h30 saímos da casa da família da Sara e seguimos em direção de Santa Rosa (reparou que nem fomos no museu jesuítico?). Nesta cidade, dormimos no ginásio de esportes e pudemos visitar um único prédio conservado das missões.

Ruína de Santa Rosa.

O quarto dia de pedal tinha caminho incerto. Chegamos numa bifurcação em que era possível ir a Coronel Bogado, ou virar e andar mais 30 km pra San Cosme e Damián. Decidimos almoçar em Coronel Bogado e voltar para a bifurcação pra passar a noite em San Cosme. Pedal de dia inteiro dessas coisas. Tivemos que andar 20 km a mais por conta disso, mas San Cosme estava a 30 km da bifurcação e tardaria mais 1,5h pra almoçarmos, fora que era arriscado nem encontrarmos mais comida. Alimentação é uma parada que volta a ser vital nesses dias. A estrada pra San Cosme, depois do almoço, era de mão dupla e sem acostamento, mas passava um veículo a cada 10 minutos, então foi um pedal super gostoso de fazer. Chegamos à cidade e jantamos no restaurante da Alba. Conversando com a família dela, convidaram a gente pra usar o quintal deles como acomodação, o que prontamente aceitamos. Fomos ao museu, ao lado das ruínas, mas infelizmente o mirador das estrelas da cidade fechava muito cedo, às 21h. Na volta, Alba nos comentou sobre as dunas do rio Paraná, onde tentaríamos ir no dia seguinte.

Decidimos ficar em San Cosme, para conhecer o mirador e as dunas. Impressionante como foi necessário eu ir para o Paraguai, visitando ruínas jesuíticas para pela primeira vez na vida olhar para o espaço num planetário. A visita ao museu, pela manhã, foi extremamente bem guiada e pudemos saber sobre Buenaventura Suárez, padre jesuíta nascido na Província de Santa Fé, na Argentina, quando essa ainda fazia parte do Paraguai. O cara estudou astronomia na Espanha e voltou pro Paraguai, para liderar algumas das missões. Primeiro astrônomo da América Latina, até hoje as previsões feitas por Buenaventura continuam bastante precisas. Por conta disso foi criado esse planetário onde fizemos observações aos céus de dia e de noite.

Nossa guia, ao lado de um brinquedo que eu tinha que ter tido quando era pequeno.

Esperando a noite chegar pra olhar o céu.

Destino:

No almoço, descobrimos que não seria possível visitar as dunas do Rio Paraná, porque haviam feito um passeio pela manhã e não havia outro marcado. Como o custo do passeio era muito alto (cerca de 600 mil guaranis, divididos por todos os que fizessem a visita), não seria possível para eu e o Affonso pagarmos tal valor (cerca de uns 240 reais). Conversamos com a Carolina, que organiza o passeio e falamos sobre a publicação no blog e talvez em outros veículos. Então ela fez um desconto para jornalistas, colocando o preço de custo de 300 mil. Alba, que estava nos hospedando, e sua filha Viviane quiseram ir e pagaram parte do valor. No dia seguinte, estávamos rumando para as dunas do Rio Paraná, que não só por sua beleza, mas por sua história e pelo compromisso que firmei com a Carolina, merecem um outro post.

Daqui a pouco voltamos.

 

 

Paraguai – parte 1

Tentando relembrar o que foram as últimas duas semanas, tudo se embaralha. Estradas, países, fronteiras, pessoas, nomes, locais onde dormimos, comidas, mates e tererés… O registro contínuo se faz obrigatório porque o acúmulo é certo depois de poucos dias.

Meu atraso não pode ser justificado, mas ao menos pode ser compreendido por conta do pau que meu computador teve. Como sei que alguns cicloviajantes e pessoas que querem colocar o pé na estrada acompanham esse blogue, vale dizer que planejei levar meu computador antigo, que tem garantia estendida de 3 anos. Até aqui, tudo certo que ele tenha dado pau. Vamos ver o que a garantia me conta quando chegarmos em Buenos Aires.

Escrevo hoje da pequena cidade de Itaqui, que fica entre São Borja e Uruguaiana, todas as três às margens do Rio Uruguai. Extremo sudoeste do Brasil e fronteira com a Província de Corrientes, na Argentina. Acho que o último registro mais preciso que fizemos foi em Asunción, ainda abalados com a morte da Julie Dias.

Antes de lá, havíamos cruzado o Paraguai em três dias, entrando por Ciudad Del Este, posando em Campo Nueve, San Jose Del Arroyo e terminando em Asunción. Nesta última, fomos recebidos pelo Giulio Andreotti, músico e morador de Asunción, que faz parte do Couchsurfing. Ficamos em sua casa por três dias e saímos em direção a Encarnación, no extremo sudeste do Paraguai. No caminho, posamos em Quiindy, San Juan Bautista, entramos em San Ignacio, posamos também em Santa Rosa e duas noites em San Cosme y Damián, para enfim chegar a Encarnación.

Este trajeto nos interessava para poder conhecer minimamente o Paraguai, país por onde poucos brasileiros viajam e por onde ainda menos cicloviajantes se arriscam. A última palavra foi escolhida porque nossa imagem do Paraguai nos sugere que viajar por lá é um risco. Depois de cruzar o país e coltar, não direi o contrário, mas devo dizer que o risco é bem menor do que imaginávamos. Já nos primeiros dias, ficamos realmente surpresos (pra não dizer chocados), ao ver meninos de 13 ou 14 anos andando de moto. Nem vou dizer que estavam sem capacete, porque os adultos também não o usam, com exceção de Asunción e Ciudad Del Este. As motos são extremamente populares no interior do Paraguai, sendo os motoqueiros os que ocupam a posição de “oprimidos”. Posição que costumeiramente nós ciclistas ocupamos em cidades onde as bikes começam a aparecer. Por incrível que pareça, o caos geral causado pela quantidade e os múltiplos usos feitos da moto faz com que a média de velocidade seja mais baixa e também com que as motos estejam quase sempre no acostamento. Como cruzamos todo o Paraguai usando os acostamentos, era comum ser ultrapassado por uma delas numa daquelas finas que normalmente levamos de carros. A boa nova é que, se caíssemos, o acidente provavelmente não seria fatal. Nada aconteceu, mesmo com pessoas circulando pelos acostamentos, motos vindo na contramão, motos com famílias inteiras (vi até com 4 pessoas) e motos pilotadas por crianças. Parece, de novo, que o caos do trânsito de lá obriga as pessoas a irem mais devagar e tomarem mais cuidado.

Tipo de imagem corriqueira na Ruta 2 Fonte: http://www.abc.com.py/nota/asi-se-maneja-por-ruta-2/

A maneira como as cidades do interior do Paraguai se desenvolveram também é bem peculiar. No Brasil, estamos acostumados a pegar um acesso ou um trevo para entrar numa cidade. No Paraguai, na grande maioria das vezes, a própria estrada é a avenida principal da cidade. Giulio nos explicou que isso foi um problema de planejamento das pistas, que foram construídas exatamente sobre as antigas rotas de tropeiros, diferente das estradas brasileiras que foram construídas próximas, mas ao lado das cidades. O resultado é um misto de marginal, com cara de interior e com muitas homenagens aos mortos na estrada. No princípio, achei que o Paraguai teria a mesma quantidade de cruzes que no Brasil, mas logo no primeiro dia já desisti de registrar todas as cruzes que encontrávamos. Como disse no post anterior, a sensação é de andar por um grande cemitério.

Estávamos apreensivos quanto a onde terminaríamos dormindo, uma vez que fomos diversas vezes recepcionados pelas prefeituras e secretarias de esportes no Brasil. Por lá, no primeiro dia encontramos um brasileiro que mora no Paraguai há décadas e que nos permitiu armar a barraca no seu quintal. A cidade era Campo Nueve (ou Doctor Eulogio Estigarribia, como renomearam, mas todo mundo chama de Campo Nueve). Antes de chegar na casa, o Affonso ficou pra trás, enquanto eu seguia a moto do brasiguaio. Foi a oportunidade de usarmos pela primeira vez os radinhos que compramos em Foz do Iguaçu, exatamente pro caso de nos separarmos. Conhecemos toda a família do nosso anfitrião, ganhamos uma hamburguesa, dormimos cedo e partimos pra San José Del Arroyo.

Nesta cidade, fomos recebidos pelo diácono da igreja local. Armamos a barraca numa espécie de palco anexo à igreja, onde o ar era fresco de noite, mas que descobrimos ser uma área bem aberta à circulação de pessoas. Tivemos que revezar cuidando das coisas, o que não foi muito difícil já que não havia nada o que fazer na cidade. O curioso foi receber uma jarra de suco espontaneamente da vizinha da igreja. Eu e o Affonso às vezes brincamos que estamos jogando Zelda e que ganhamos alguns itens. Em Ponta Grossa, o Cláudio nos presenteou com duas meias de dedos, melhores para o frio. Em Cascavel, o Túlio deu Malto Dextrina ao Affonso, que serve pra repor carboidratos. Em Ibema, o Affonso recebeu um tupperware grande de comida de uma mulher e mais 10 reais de um senhor. Mais pra frente, conto também dos itens que perdemos pelo caminho.

Meias de dedo!

Ainda em San Jose del Arroyo, um raio da roda traseira do Affonso estava quebrado. E pra nossa total surpresa, não havia bicicletarias na cidade. Nenhuma. Veja como faz sentido: a criança com 12 anos já está aprendendo a usar as marchas na moto. Em todos os lugares, só existem borracharias e nenhuma bicicletaria. O calor nessa região variava entre 28 e 37 graus. Tudo isso colabora pra que não haja demanda por bicicletas, tampouco por bicicletarias. Não tínhamos a ferramenta pra sacar o cassete, e o Affonso tentou resolver com um cara que arrumava motos. Não rolou o improviso e não tínhamos confiança pra ele rodar 103 km até Asunción com o raio quebrado. A solução foi ele ir de ônibus e eu ir sozinho de bicicleta.

Saí de San Jose tarde, lá pelas 11h. Cheguei a Asunción, depois de uma parada pro almoço e três pra tomar sorvete, quando a noite já chegava. Logo na entrada, já encontrei com um mecânico que relembrou a Guerra do Paraguai. Essa imagem da guerra, bem como a guerra contra a Bolívia, forjaram o imaginário e a identidade nacional (ao menos pelo que eu pude ver) e estarão presentes durante toda a nossa passagem pelo país. Cheguei no apê do Giulio e o Affonso já estava por lá. Alguns dias de wi-fi, cidade grande e cervejas nos esperavam.

Entrando em Asunción - registro da gopro

Ficamos ao todo 3 dias e 4 noites da casa do Giulio, nas quais fomos convidados todos os dias pra sair ao pub mais próximo, com a ilustre companhia do nosso anfitrião. Giulio é editor de uma TV local e músico da orquestra municipal. Mora na região central de Asunción e conhece gente pra caramba por lá (parecia um vereador cumprimentando eleitores a cada esqina). Com ele, fomos a um pub e três restaurantes massa pra caramba. Um dos restôes, o melhor de todos, foi o Lido, que já estava super indicado pelo Gilberto Kyono. Os preços eram bem fora da curva da vida franciscana da estrada, mas nada como voltar um pouco a ter o que era o cotidiano de São Paulo.

Foi também por meio do nosso anfitrião que começamos a ouvir uma outra história do Paraguai, que só vai ganhar forma mais precisa quando saímos do país. Cabe dizer que a Guerra do Paraguai, que estudamos super pouco por aqui, matou 90% da população masculina do país, o que já dá uma idéia do tamanho da destruição que causamos. Boa parte das questões de diplomacia do Brasil são apresentadas hoje como forma de compensar os estragos da guerra, mas no geral o Paraguai continua vendendo quase a metade da energia de Itaipu super barato pro Brasil e continua no caminho do subdesenvolvimento, com seus carros importados quase sem impostos e divisão de terra extremamente concentrada.

Asunción é uma capital caótica como a São Paulo de 10 anos atrás, onde os donos de carro mandam. A única imagem da cidade que me tira esse referencial é a da comemoração do dia dos Heróis. Calhou de estarmos lá nesse feriado e fui assistir os festejos na Praça dos Heróis. Tanto a peça quanto a apresentação de dança referenciavam a morte do Marechal Solano López, assassinado pelo exército brasileiro e que deu fim à Guerra do Paraguai. Saí com essa imagem forte na cabeça: a de uma identidade nacional forjada na morte e nas derrotas. Na Guerra com a Bolívia, o Paraguai ganhou, mas cedeu territórios no acordo de paz, o que também é uma espécie de derrota. No entanto, mesmo assim eles têm um dia para comemorar seus heróis e não há uma cidade por onde passamos que não tenha uma rua “Mariscal López”.

Fim da primeira parte da viagem ao Paraguai.

Ps: As imagens desse post são meio toscas, pq as melhores ficaram presas no backup. Como o backup da apple só serve em outro macbook, to na roça.

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Mais uma ciclista morta na avenida paulista

Em 2009, quando minha bike tinha acabado de ser roubada, aconteceu o atropelamentdo da Márcia Prado na Avenida Paulista. Naquela época, como não estava pedalando, acompanhei as manifestações a pé e tentei saber por uma série de postagens quem era a pessoa que havia sido morta.

Em 2012, Márcia Prado tem um memorial na Avenida Paulista. Além disso, seu nome está marcado na primeira rota cicloturística pro litoral. Recentemente, um grupo foi acompanhar um dos julgamentos do processo. A memória da pessoa e do atropelamento continuam presentes nas listas tanto da Bicicletada, quanto do Ciclotur. Com isso tudo, quero dizer que muito foi feito para que houvesse memória do fato e para que ele não se repetisse.

Hoje, mais uma ciclista foi morta num atropelamento de ônibus na Avenida Paulista. Pelas primeiras fotos, arrisco dizer que ela foi morta a menos de uma quadra de onde morreu a Márcia Prado. Ainda não sabemos quem é, Seu nome era Julie Dias e a conheci neste ano no encontro nacional de cicloturismo em Santa Maria Madalena. Com a caixa de papelão no bagageiro, Julie não era uma ciclista de “lazer”, mas alguém que se transportava de bicicleta. As primeiras testemunhas ouvidas afirmam que o motorista atravessou no farol vermelho, o que, se confirmado, é o mesmo que dizer que o motorista assassinou a ciclista. Cara, só posso dizer que se foi uma moça jovem, muito bonita e de extrema simpatia, que curtia viajar de bike e que vai fazer uma falta do mais grande caralho nos próximos encontros de cicloturismo.

Cabe ressaltar que, de 2009 pra cá, nenhuma faixa especial pra ciclistas foi pintada na Avenida Paulista. Os ônibus continuam circulando do lado direito, aonde os ciclistas são obrigados por lei a transitar. Os carros continuam sendo vistos com frequência acima de 60km/h. A CET continua não autuando pessoas que passam com seus carros a menos de 1,5m dos ciclistas. Em suma, a Avenida Paulista continua sendo simbólica do quanto nossos políticos estão cagando pros ciclistas e pras leis que deveriam estar cumprindo.

Lembro tudo isso, porque passei 4 semanas de bicicleta nas estradas do Brasil e 3 dias nas estradas do Paraguai. E a sensação geral de circular por uma estrada, um espaço feito para os carros andarem a velocidades inumanas, por vezes é a mesma que de passear por um grande cemitério, depois de encontrar centenas de cruzes e monumentos aos mortos em “acidentes”.

Brasil

Paraguai

Avenida Paulista

Entrevista que fizemos em Prudentópolis-PR

Há quase duas semanas respondi a uma entrevista em Prudentópolis sobre nossa viagem de bicicleta. Só há poucos dias conseguimos achá-la publicada na internet: http://intervalodanoticias.blogspot.com/2012/02/ciclista-que-vao-percorrer-as-americas.html

Uma correção: eu não digo “místico”, e sim “turístico” num trecho ao final da entrevista. Houve um pequeno corte no som que dá essa impressão errada.

Obrigado Élio Kohut pela entrevista.

Foz do Iguaçú-PR e Ciudad Del Leste

Fazem já quase duas semanas que não publicamos nada no blog, ou por falta de internet ou por desorganização nossa. Mas confesso que pra mim, registrar ou contar o que estamos passando tem se imposto como uma necessidade tão urgente quanto comer, ir no banheiro ou jogar video-game (que saudades de Zelda! Sério…). Agora já estamos em Asunción no Paraguai, quase partindo em direção a Encarnación. Vou tentar lembrar o que aconteceu desde Cascavel:

Momentos antes de partirmos de Cascavel rumo a Foz do Iguaçú, um caminho de 140 km que pretendíamos percorrer em um só dia, tentávamos descobrir no google maps alguma informação sobre o relevo deste trecho, sem sucesso. Se houvessem serras ou subidas como houveram em todos os dias anteriores à nossa chegada em Cascavel, essa distância iria nos esgotar, mas não queríamos ter que dividir este trecho em dois dias de viagem. Quem concluiu que o caminho seria plano foi o Túlio (nosso anfitrião na cidade): “Todas as cidades a partir de Cascavel até Foz do Iguaçú recebem indenização pelo alagamento devido à construção da barragem na hidroelétrica de Itaipú”.

 

Affonso, Túlio e Fabrício na nossa despedida de Cascavel-PR

No caminho, mais um tanto de toda aquela paisagem que cansamos de ver ao longo de São Paulo inteiro e muito do Paraná: quilômetros de plantações de soja, eucalipto, pinho, e em menor escala milho. Eu ficava imaginando aquelas crianças do interior que quando vêem o mar pela primeira vez tem uma sensação de imensidão, de infinito, e como eu tinha quase a mesma sensação ao olhar os campos de soja ou plantações de eucalipto, a perder de vista, mas sem o deslumbre da criança, e sim com a angústia de quem vê as evidências da ganância pelo lucro como uma forma de miséria. Não era muito diferente, pra mim, do que estar diante de um deserto (com todo respeito aos desertos, que tô cheio de vontade de conhecer).

Campo de soja entre Cascavel e Foz do Iguaçú

A foto ficou ruim, mas na propaganda uma mão segura uma semente de soja, que é igual a muita grana.

Durante a pedalada pelo estado do Paraná, os inúmeros rios (alguns muito, muito bonitos), as araucárias, um grande trecho onde a cada quilômetro havia uma olaria emanando cheiro de tijolo queimado pelas chaminés, e também as serras, tudo isso dava um respiro e outro ritmo pra o cenário repetitivo que se revezava entre soja, eucalipto e pinho. Quanto mais perto chegávamos de Foz, mais esse cenário era invadido por cartazes (outdoors) realmente enooormes anunciando lojas ou produtos a venda no Paraguai.

Anúncio da loja paraguaia Monalisa, constante em todo o estado do Paraná.

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Um episódio solto, que aconteceu poucas horas antes de chegarmos em Foz: fazia muito calor, e o Fatício me esperava na sombra de uma árvore a poucos metros de um posto de gasolina onde reporíamos nossa água. Uns 15 metros antes da sombra, sentada na estrada no exato ponto onde passam os pneus direitos dos carros e ônibus sobre o asfalto estava sentada uma pomba, parada e quieta, parecia que chocava um nada. Eu passei a pomba, cheguei na sombra e comentei com o Fatício: “Olha a suicida lá”. Nem 10 segundos depois veio o caminhão e só ouvi um “ploc” que queria poder apagar da cabeça. O Fatício viu e comentou: “É, pegou mesmo”. Nem virei o rosto e seguimos pro posto. O Fatício voltou a falar: “Cara, que estranho!”. Ficamos com isso na cabeça até que um frentista, muito sorridente e animado, chegou perguntando: “Posso saber de que ponto do planeta vocês são?”

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Nessa viagem muita coisa ganha aquele frescor dos cheiros na infância, como o cheiro de pão quentinho que vem te acordar na cama de manhã. Mesmo o cheiro de chiqueiro, quando passava um caminhão com dois andares lotados de porcos berrando loucamente, ou de um animal morto na beira da estrada, tudo isso estranhamente tem me devolvido essa sensação de frescor. E eu, que já não tenho mais avós vivos, tive de volta a sensação de um acolhimento de vó nos 5 dias que passamos em Foz, na casa da Cida Muriana, parente distante e até há pouco tempo desconhecida do Fabrício. Mesmo comendo mais de 2 quilos por dia durante as pedaladas (que eu nunca soube pra onde vão), na Cida me senti naquele típico regime de engorda em casa de vó (uma avó jovem, diga-se de passagem).

Cida Muriana, logo após nossa chegada. Reparem e lembrem desse tipo de cadeira, falarei dela no post sobre o Paraguai.

E o Fatício, recém apresentado à Cida, e ainda suado pela viagem.

Logo que chegamos, muito cansados mas rindo à toa, a Cida já nos trouxe copo d´água geladinha, depois achocolatado, depois fez a janta, depois sorvete, e foi assim todo dia, mesmo com o Fatício, a Juli e eu insistindo em dividir as tarefas e os gastos. E toda essa comida e amor davam e sobravam pra nós quatro, mais a Jú e o João (filha da Cida e seu marido), o Xande e seus três filhos (Luiza, Xandinho e Angelo), o Lucas, o Pedro, e quem mais morasse ou frequentasse a casa da Cida.

No primeiro dia após nossa chegada (e da Juli, que nos acompanhou de Cascavel a Foz de ônibus) fomos conhecer a usina de Itaipu, ou mais propriamente, Itaipu Binacional (é tanto brasileira quanto paraguaia, ainda que menos de 10% da produção de energia seja destinada ao Paraguai). É, junto com as Cataratas do Iguaçú e Ciudad del Leste, um dos três lugares absolutamente assombrosos da região. A Juli escreveu um texto que publicamos aqui chamado “dois barbudos no templo do capitalismo” que fala muito bem sobre Itaipú, e eu queria mesmo que o Fatício também falasse algo, que ele é muito observador das questões políticas, econômicas, e de todo o custo humano envolvido na construção e manutenção da usina. Fala Fatício, faz favor!!

No segundo dia fomos conhecer o lado argentino das Cataratas do Iguazú. Eu já havia visitado duas vezes as Cataratas, até então apenas pelo lado brasileiro. Na primeira vez em que fui, um dia de muito sol e com as quedas de água especialmente volumosas, tive uma das experiências sensoriais mais intensas que já viví: chegando na ponta da passarela de metal que vai em direção à queda da Garganta do Diabo, era uma imensidão de água caindo, e aquele volume todo fazia o rio que corria sob a passarela formar inúmeros redemoinhos na superfície da água, e também redemoinhos de vapor ou gotas muito finas que se precipitavam pra fora da água em turbilhões; eu via arcos-íris em todo canto onde olhava, até um bambolê de arco-íris ao redor de mim, aquilo tudo parecia um enorme e truculento berçário de arco-íris; era água que te molhava de cima pra baixo, de baixo pra cima, de quatro, de lado, por trás…e quando olhei pra cima vi uma enorme esfera branca flutuando a poucos metros do início das quedas, toda de vapor de água condensada e rodando lentamente, parecia um planeta em branco. Tudo isso junto era um exagero de beleza concentrada, e nenhuma foto nem vídeo chegaria perto de expressar o que vi ou que pode acontecer por lá.

O lado argentino é sem dúvida muito mais bem estruturado, amplo e abrangente do que o brasileiro. É um enorme parque, no mínimo 10 vezes maior em espaço, variedade de opções de passeio e visões das Cataratas do que o lado brasileiro. E não posso deixar de falar do enorme fluxo turístico nos dois parques, um frenesi constante que, se bobear, também te contagia. Já falei muito das quedas, vejam algumas fotos e não deixem de conhecer quando puderem:

Juli esperando pra pegar o barco que leva até a ilha entre algumas quedas

 

Xande, Fatício e Juli no barco

 

Cida Muriana sobre a queda da Garganta do Diabo

A Garganta do Diabo vista de cima

Acordamos umas 8:00 no terceiro dia pra atravessarmos a Ponte da Amizade que liga Foz do Iguaçú à segunda maior cidade paraguaia, Ciudad del Leste. Como pretendíamos fazer algumas compras por lá, tivemos que esperar as casas de câmbio abrirem pra trocarmos reais por dólares.

Fatício e Juli observam o Rio Paraná através da cerca aberta na Ponte da Amizade

Tampouco seria minha primeira vez em Ciudad del Leste, mas não canso de ficar assombrado com a agressividade do comércio patente em todo canto da cidade; é o capitalismo na sua forma mais crua, sem terno nem etiqueta. Eu já estava mais ou menos avisado sobre o clima de velho-oeste no Paraguai, mas não deixei de me assustar com os seguranças particulares armados com escopetas ou metralhadoras nas portas de lojas e até de restaurantes. Nem com os vendedores de rua, homens, mulheres, velhos ou crianças, te assediando em massa com as mesmas estratégias de corrupção: “Camisinhas musicales, 5 reais…3 reais…1 real…Cocaína, haxixe?…”. Dentro de muitas lojas, um canal de televisão local exibe permanentemente e ao vivo um ângulo fixo da ponte da amizade, pra que os comerciantes avaliem como está o “clima” nas aduanas. A atmosfera real de malandragem, de mutreta, nos fazia tentar conter a histeria das compras pela extrema cautela de quem não quer ser sacaneado ou assaltado nem na rua nem nas lojas pelos vendedores, mas mesmo assim quase não pudemos evitar mais de uma situação que poderia ter nos dado muito prejuízo.

Juli compra meias

 

 

Interior de loja em Ciudad del Leste

Conhecer certas cidades através de moradores com conhecimentos específicos pode te propiciar uma profundidade de contato que você nunca poderia ter sozinho. Passei por isso na segunda vez em que visitei Brasília, quando tive o privilégio de conhecer outros aspectos da cidade através da mãe de uma amiga de lá, que trabalhava no Congresso e fez 3 faculdades: arquitetura, ciências políticas e gestão pública. Mesmo sem ter me convencido a gostar de Brasília, eu não poderia ter tido anfitriã melhor pra me apresentar os meandros daquela cidade. O mesmo aconteceu com o João, marido da Jú (filha da Cida), que mora em Foz e trabalha em Ciudad del Leste numa importadora. Foi ele quem nos deu os contatos de lojas nas quais poderíamos confiar, e a quantidade de dicas, macetes, informações que pegamos dele é incalculável. Invejo o Fatício por ter podido ir uma outra vez a Ciudad del Leste de moto na garupa do João: acho que andar de moto no trânsito realmente caótico e sem leis de lá, cruzando as fronteiras por corredores estreitíssimos e super concorridos, e mesmo com todo o risco envolvido, é uma das experiências mais intensas e específicas de lá. E fiquei pasmo com o João quando, ligando pela primeira vez o iPod que comprei e ao ver que estava todo escrito em chinês, ele soube trocar, às cegas e depois de uns 15 minutos mexendo no aparelho, o idioma padrão pra português.

Juli, Fatício, Juliana, Cida e Affonso na nossa partida de Foz do Iguaçú

Após os 5 dias de muito turismo, compras, família e descanso em Foz, novamente nos preparamos pra despedida, da Cida e sua família, e também mais um “até breve” pra Juli, que após uma semana nos acompanhando voltava pra São Paulo.

 

Ainda sobre São Miguel Arcanjo, Zizo e Resistência.

Quando estive em São Miguel Arcanjo, na casa da Nê Balboni, tentei publicar esse texto numa revista de São Paulo. Acabou não rolando, então publico aqui, com um pouco mais de riqueza de detalhes que o texto original. Fotos de arquivo, minha e da Jurema.

Matias e Abaeté

O ano é 1969. Matias, 24 anos, acordou para mais um dia de muito trabalho. As semanas anteriores haviam sido pesadas, verificando cada detalhe da ação e definindo, tão cifradamente quanto possível, o grupo mínimo necessário. O banco ficava na avenida Paulista, seu grupo não estava muito longe dali, e a polícia estava cada vez mais atenta a esse tipo crime. Na sua cabeça, a certeza de que aquela seria uma entre poucas ações que dariam a base necessária para a retaguarda do comando. Matias lembrava de São Miguel Arcanjo, onde nascera, e onde sua família guardava uma boa quantidade de terras. Lembrava do sertão de sua cidade, onde cogitava treinar um grupo que fizesse seu papel histórico naquele canto do estado. Na mão, um revólver que mais estalava do que atirava. Na ação, nem todos os apelidos eram conhecidos, nem ele próprio os queria saber. Junto dele, estava Manoel – não o apelido, mas o nome – que será importante testemunha da ação.

O ano é 2012. Abaeté, 27 anos, acordou tarde, de uma noite com algum vinho e toda sorte de acepipes naturais: cevada, feijão, pepino, bolo de mandioca e ovos. No café, frutas, um violão, pão caseiro, sucos. Muitas pessoas no sítio UOAEI. Nomes de índios entre todos os amigos: Ungará, Jacira, Jurema, Itaberaba… Preparam-se pra uma expedição ao Parque do Zizo, reserva particular de Mata Atlântica da família de Abaeté, situada em São Miguel Arcanjo, parte da mata remanescente onde também se encontra no Parque Estadual Carlos Botelho. Uma noite ao lado da segunda (ou seria a terceira?) maior cachoeira do estado de São Paulo. 5 pessoas num fusca até a entrada, mais 5 kilômetros de caminhada mata a dentro. Chega uma bicicleta e, em cima dela, Manariru.

Na saída, Matias não está tão tenso quanto esperava. Sua primeira ação poderia ser a única, dependendo dos desígnios da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele sabia que por nada deixaria de fazer o curso de arquitetura e que tudo que havia aprendido na engenharia daquela universidade murada seria útil de alguma forma, até que pudesse seguir o que sentia ser seu talento verdadeiro. Até lá, as armas foram sua escolha para combater um inimigo real, concreto, que parecia estar em todo lugar, no olhar dos civis que os apoiavam, nas batidas em que se cobrava a carteira de trabalho, na ostensiva repressão a tudo que fosse distinto das rígidas, e tantas vezes sem sentido, determinações militares. O fusca seguia na direção do banco escolhido, mas o barulho de sirene faria todos saírem do carro para se proteger. Do carro da polícia, grita Sérgio Fleury, que já os patrulhava há mais de três dias e os seguia desde que Matias entrara no carro.

Abaeté pergunta se Manariru tem experiência com acampamentos, se tem disposição física para passar uma noite desconfortável. Explica que a experiência será de muito silêncio, introspeção. O dono da bicicleta não titubeia em dizer que está preparado, que quer se juntar ao grupo e que talvez faça um relato para a revista da capital sobre a experiência. Abaeté então lhe empresta um saco de dormir e uma blusa. A bicicleta vai na frente, o fusca parte depois de 15 minutos. São 12 kilômetros até a entrada do Parque do Zizo, que está fechada (a chave ficou com o tio Chico, que não estava na cidade). Todos, do fusca e da bicicleta, se reencontram e juntos pulam o portão do parque, confiantes na experiência de Abaeté e na certeza de que aquela é uma reserva particular e que um dos herdeiros liderava o grupo.

Ouvem-se muitos disparos. Um deles, de fuzil, acerta Matias, mas ninguém pôde saber onde, porque o caixão de zinco com seu corpo chega lacrado. Agonizante, Matias é resgatado e jogado no carro da polícia como indigente. Levado até o DOPS, já não pensava mais na infância, nem na arquitetura, muito menos em São Miguel Arcanjo. Sabia que havia a quem proteger, que não lhe dariam tratamento e, àquela altura, só queria algum fiapo de esperança em que acreditar para sobreviver. Mas se a perda de sua vida fosse necessária para poupar outras, estava disposto a entregá-la, mesmo que achasse essa a situação mais injusta que poderia conceber. No DOPS, a primeira hora de sangramento foi infinita. Colocado em uma posição em que podia ver o próprio sangue, pediam-lhe nomes do grupo e ele não os sabia. Perguntavam de pessoas que ele não via há anos e apanhava ao negar cada pergunta.

Nos primeiros passos, o grupo descobre que esqueceu a comida. Somam-se os víveres e temos um caixo de uvas, um saco de castanhas do pará, um pão grande e três cenouras para 6 pessoas e três refeições. Tudo é racionado e o que era silêncio de instropeção, vai se tornando silêncio de quem guarda energia. A natureza completa o banquete com bananas verdes. Todas as relações são ritualizadas. Para começar a caminhada, dá-se as mãos em roda. Para acender a fogueira, dá-se as
mão em roda. Para ir para a cachoeira, todos devem dizer sim. Frente ao imenso jorro de água, distribuído em diversas quedas, o grupo não se contém nos gritos de alegria. Tiram as roupas, nadam, dormem ao Sol, fotografam-se, banham-se e dão-se as mãos, em roda.

Duas horas depois, Matias entra numa espécie de nirvana. Seu pensamento persiste, embora seu corpo já não responda a mais nada. Rubens Tucunduva, delegado que o interrogava, já tinha desistido de jogar-lhe água fria e pede ao cabo que desse um banho no corpo e que o levasse ao Hospital das Clínicas. Matias ouve toda a conversa e pensa que chegou o momento de sobreviver, de talvez ir para Cuba, mas antes passar em São Miguel, abraçar a mãe e os irmãos, explicar por que não entrou em contato nos últimos dois anos, dizer que era arquitetura (já sabia!), que tinha tido amores e que teria outros, que não gostava do cheiro de pólvora, que não vendessem as terras, que queria ouvir os muriquis mais uma vez, que o Lamarca era mesmo aquilo que imaginavam, que esperassem um pouco mais e estivessem prontos porque o mundo não podia ficar daquele jeito pra sempre. Não precisava mais da arma que não atirava direito. Nunca quis matar. Nunca quis morrer.

À noite, fogueira alta, e um grande ritual de benção de objetos pela natureza. Cortam-se folhas de bananeiras, arma-se uma rede e todos encontram seu lugar. Abaeté sabe que aquilo é um oásis, mas que não é mantido com pouco esforço. Tem a certeza de que a própria ocupação da área já era uma posição política. No dia seguinte, mais um banho em nova cachoeira, mais mãos dadas em roda, fotos e a última refeição: 3 uvas, 4 castanhas do pará, 5 pedaços pequenos de cenoura, algumas bananas verdes cozidas e 50 gramas de pão por pessoa. Todos sabem que dormiram mal, que comeram pouco, mas ninguém reclama.

Os legistas Antônio e Irany recebem o corpo de Matias, que fora encaminhado ao Hospital das Clínicas já desfalecido e que está sob a responsabilidade do IML. Causa mortis: tiro de fuzil. Havia, no entanto, outras escoliações, que Antônio advertiu Irany para que não descrevesse, porque não teriam causado a morte. Na ficha, mais informações sobre sua vida do que Matias jamais teria pensado. Já tinham seu nome, sua cidade natal, os nomes dos integrantes de sua família e agora adicionavam o dia em que expirou. Lacrado o caixão de zinco, sua mãe o recebe em São Miguel Arcanjo. O soldado se comisera da mãe que chora, mas não deixa de cumprir a ordem de avisar que aquele era um ladrão, que fora morto como um meliante porque mereceu, que assaltava bancos e que representava um perigo. Diz que não acredita que a mãe o havia educado assim, mas que não pode fazer nada se o indivíduo é ladrão.

Na volta, os 5 kilômetros finais parecem ter dobrado de tamanho. Os roncos dos estômagos faziam um coro mais alto do que os 600 muriquis remanescentes no parque. Abaeté chega ao portão trancado que haviam pulado. Antes de sair, pede que Manariru encha o cantil de alumínio que carregava. O companheiro de guerra o completa, mas não consegue fechar a tampa. Abaeté pergunta se Manariru sabe quem foi Lamarca. Abaeté explica que aquele fora o cantil de Lamarca, quando ele ainda fazia parte do Exército Brasileiro. Lamarca passou naquele mesmo parque fazendo uma das últimas patrulhas com seu batalhão, antes de desertar com a Kombi lotada de fuzis armados leves. Deixara o cantil ao avô de Abaeté, que era guarda florestal. Do avô ao tio, que partiu aos Estados Unidos, e deste para Abaeté, que o mantinha até hoje.

Somente em 1996, Matias será reconhecido como um dos assassinados pela ditadura militar brasileira. Seu nome, Luiz Fogaça Balboni, passa a figurar na página 70 do Livro dos Mortos e Desaparecidos políticos a partir de 1964. Em 1997, ou 28 anos depois da morte, Manoel Cyrillo, que estava na ação, encontra a família do companheiro de luta e explica a que horas tudo aconteceu. Os elos vão se fechando e fica evidente que o rapaz fora torturado antes de morrer. Em fevereiro de 1998, a família recebe 120 mil reais, segundo relatos no site do Parque do Zizo (ou seriam 250 mil dólares, nas palavras de Abaeté), como indenização pela morte do filho. Em 1999, um vereador de Itapetininga propõe que uma rua ganhe o nome de Luiz Fogaça Balboni. No mesmo ano, a família dele decide utilizar o valor da indenização numa reserva conservada de Mata Atlântica em São Miguel Arcanjo – é criado o Parque do Zizo (apelido de Luiz Fogaça Balboni). Em 2011, é criado o sítio UOAEI, mantido por Rafael Vasconcelos Balboni, o Abaeté, onde são desenvolvidos projetos de agricultura sustentável e defesa do Parque do Zizo.

Abaeté diz que é de paz, mas já teve que tirar peixeira pra proteger o parque contra palmiteiros. Relata que a questão fundiária e a grilagem continuam sendo constantes na região, mesmo com a criação do Parque do Zizo e com o Parque Estadual Carlos Botelho. Revolta-se contra a ignorância de quem não entende que uma árvore de palmito demora 12 anos para estar no ponto de colheita. Não se conforma que as pessoas não preocupem que os macacos Muriqui, os maiores da América Latina, estejam em extinção e que aquela área, onde residem, não seja devidamente conservada pelo Estado. Um jovem de 27 anos escolhe o caminho da aproximação do parque e isolamento da cidade, onde toca seus projetos e vivências ligados à natureza. Ao fim de seu desabafo e atento ao cantil que carregava na mochila, emenda: a luta continua, companheiro.