Paraguai – parte 2

No último dia em Asunción, recebemos a notícia da morte da Julie Dias. Como já foi dito, muito pouco tem sido feito na cidade para a segurança dos ciclistas, embora haja leis pra isso. E é sempre uma tristeza e um vazio grande quando vemos alguém mais próximo do nosso cotidiano tendo a vida ceifada por falta de vontade política. Colocando a culpa em quem me parecem ser os verdadeiros culpados, falta de vontade política da prefeitura de São Paulo, também do cada vez mais irrelevante Ministério das Cidades, e por fim da CET, que não autua motoristas pelo artigo 201 do CTB (1,5m de distância mínima entre carros e bicicletas). Eu sei que muito mais gente, além dela, já se foi sem sequer ficarmos sabendo, mas é traumático lembrar que aquela moça sorridente que estava em Santa Maria Madalena no décimo encontro nacional de cicloturismo não estará mais neste ano. Por conta do atropelamento, decidimos homenagear da forma como podíamos a ciclista morta.

Vida segue. Pé na estrada em direção a Encarnación, onde terminaria a nossa viagem pelo Paraguai. No caminho, a primeira cidade onde posamos foi Quiindy, em cuja prefeitura dormimos. Acontecia um aniversário de 15 anos no salão e fomos convidados pelo pai da debutante a comer com eles, tomando uma Fanta Piña (no Paraguai tem Fanta laranja, abacaxi e guaraná. Não tem fanta uva, porque foi proibido pelas autoridades sanitárias do país). Começamos a encontrar desenhos de cidades um pouco diferentes, com aquela igreja central que vemos nas cidades do interior do Brasil. Um grupo de uns 10 moleques ficaram mais de duas horas conversando conosco na sorveteria, enquanto esperávamos o fim do jogo do Olympia (um dos times mais populares do país). Fim do jogo e o guarda da prefeitura liberou que colocássemos nossas coisas numa das salas.

Levantamos cedo e seguimos o trajeto, passando por Villa Florida. Há um rio, cujo nome já não lembro e que não consta no Google maps, que cruza o centro-sul do Paraguai. Nele, existe uma praia que é bem buscada por veranistas, já que a temperatura frequentemente ultrapassa os 40 graus (como aconteceu no dia em que passamos na cidade). Como era uma segunda-feira, foi só largar a bike de canto e cair na água, com quase ninguém nas praias.

Conhecendo Villa Florida

 

Descanso pra magrela.

Almoçamos e pedi o Surubim, peixe do rio Paraná, que tanto queria comer desde que estávamos em Asunción. No restô, encontramos um casal que nos comentou sobre as ruínas jesúítcas do país. Estávamos nos aproximando das região onde aconteceram as Missões dos Jesuítas no XVIII, cujas ocupações e expulsões foram decisórias para definir as fronteiras de Brasil, Paraguai e Argentina. Terminaríamos o dia no Quartel da Cavalaria do Exército do Paraguai em San Juan Bautista. Os milicos nos cederam uma casa de hóspedes próxima do quartel, onde passamos a noite para seguir viagem. A dona do restaurante de mais movimento da cidade é uma brasileira expatriada que mal se lembrava do português. Estranhíssimo falar com alguém que é do seu país mas que não lembra a língua natal.

O terceiro dia de pedal seria ainda mais legal que os anteriores, quando rumamos pra San Ignácio e terminamos em Santa Rosa. Em San Ignácio, há um museu sobre as missões, que estava fechado quando chegamos. Terminamos visitando o museu dos heróis da cidade que lutaram na Guerra contra a Bolívia (em que, lembre-se, o Paraguai ganhou, mas perdeu território). O Affonso encontrou uma casa das vítimas do regime ditatorial do Paraguai, onde falei com um senhor que havia sido preso e torturado pelo regime de Alfredo Stroessner. O senhor me mostrou o manual de ensino das escolas das ligas agrárias, todo escrito à mão e mimeografado, com os textos em Guarani e as imagens feitas pelos próprios professores e estudantes. A região da missões foi também o principal foco das ligas agrárias no Paraguai, movimento liderado por padres jesuítas do exterior e do Paraguai e que fomentou a união e emancipação de trabalhadores locais. Esse movimento social e seus líderes foram brutalmente perseguidos pelo governo ditatorial a partir de 1976. O Paraguai já tem uma comissão da Verdade bem organizada, que inclusive é a que mantém esta casa que visitamos. Já o Brasil…

Capa do manual escolar das ligas agrárias do Paraguai.

Se liga nas ilustras e no guarani.

Saí da casa das vítimas e fui encontrar com o Affonso, ainda esperando o museu dos jesuítas abrir. Notei que meu pneu estava furado e comecei a trocar a câmara. Nisto, uma moça de moto, de nome Sara, estava na porta esperando sua mãe, pra levar de carona. Não sei bem como começou, mas sei que quando vi, o Affonso estava falando com ela. Chegou a mãe e uma hora depois estávamos com a família, compartilhando um tereré. Foi uma das tardes mais legais que passamos no Paraguai. Só sei que esquecemos um pouco da hora e às 17h30 saímos da casa da família da Sara e seguimos em direção de Santa Rosa (reparou que nem fomos no museu jesuítico?). Nesta cidade, dormimos no ginásio de esportes e pudemos visitar um único prédio conservado das missões.

Ruína de Santa Rosa.

O quarto dia de pedal tinha caminho incerto. Chegamos numa bifurcação em que era possível ir a Coronel Bogado, ou virar e andar mais 30 km pra San Cosme e Damián. Decidimos almoçar em Coronel Bogado e voltar para a bifurcação pra passar a noite em San Cosme. Pedal de dia inteiro dessas coisas. Tivemos que andar 20 km a mais por conta disso, mas San Cosme estava a 30 km da bifurcação e tardaria mais 1,5h pra almoçarmos, fora que era arriscado nem encontrarmos mais comida. Alimentação é uma parada que volta a ser vital nesses dias. A estrada pra San Cosme, depois do almoço, era de mão dupla e sem acostamento, mas passava um veículo a cada 10 minutos, então foi um pedal super gostoso de fazer. Chegamos à cidade e jantamos no restaurante da Alba. Conversando com a família dela, convidaram a gente pra usar o quintal deles como acomodação, o que prontamente aceitamos. Fomos ao museu, ao lado das ruínas, mas infelizmente o mirador das estrelas da cidade fechava muito cedo, às 21h. Na volta, Alba nos comentou sobre as dunas do rio Paraná, onde tentaríamos ir no dia seguinte.

Decidimos ficar em San Cosme, para conhecer o mirador e as dunas. Impressionante como foi necessário eu ir para o Paraguai, visitando ruínas jesuíticas para pela primeira vez na vida olhar para o espaço num planetário. A visita ao museu, pela manhã, foi extremamente bem guiada e pudemos saber sobre Buenaventura Suárez, padre jesuíta nascido na Província de Santa Fé, na Argentina, quando essa ainda fazia parte do Paraguai. O cara estudou astronomia na Espanha e voltou pro Paraguai, para liderar algumas das missões. Primeiro astrônomo da América Latina, até hoje as previsões feitas por Buenaventura continuam bastante precisas. Por conta disso foi criado esse planetário onde fizemos observações aos céus de dia e de noite.

Nossa guia, ao lado de um brinquedo que eu tinha que ter tido quando era pequeno.

Esperando a noite chegar pra olhar o céu.

Destino:

No almoço, descobrimos que não seria possível visitar as dunas do Rio Paraná, porque haviam feito um passeio pela manhã e não havia outro marcado. Como o custo do passeio era muito alto (cerca de 600 mil guaranis, divididos por todos os que fizessem a visita), não seria possível para eu e o Affonso pagarmos tal valor (cerca de uns 240 reais). Conversamos com a Carolina, que organiza o passeio e falamos sobre a publicação no blog e talvez em outros veículos. Então ela fez um desconto para jornalistas, colocando o preço de custo de 300 mil. Alba, que estava nos hospedando, e sua filha Viviane quiseram ir e pagaram parte do valor. No dia seguinte, estávamos rumando para as dunas do Rio Paraná, que não só por sua beleza, mas por sua história e pelo compromisso que firmei com a Carolina, merecem um outro post.

Daqui a pouco voltamos.

 

 

5 opiniões sobre “Paraguai – parte 2

  1. Cíntia Muriana disse:

    Muito bom!!! Adorei a parte do aniversário de debutante… Saudades de vcs! bj

  2. Juli =) disse:

    Tem mais fotos deste livro? Achei lindíssimo um livro didático escrito e desenhado a mão. E pra mim é muito novo jesuitas ligados a “ligas agrarias”! Vou mandar pra Celina e ver o que ela sabe contar. Que doidice, tudo. Principalmente proibir a fanta uva.

    Ficou bonita a homenagem à Julie Dias.

    E agora vê se vai pra outro país que tá estranho a galera perguntando onde vocês estão depois de quase dois meses de viagem e eu respondendo: “hum… no Brasil…” rs

    Bjos.
    Juli =)

  3. Maria de Fátima do Prado Valladares disse:

    Maravilha. Primeiro leio sofregamente, faminta. Nem sei o que estou vendo. Depois volto com calma e procuro nos detalhes estar junto.
    Na minha percepção ainda é o começo, embora também com uma outra engrenagem. O que estão percebendo no corpo? Achei o Fon mais forte, ou é impressão? E o aproveitamento das pedaladas? Tem ladeiras como no começo da viagem? E a língua? Estão se comunicando em qual?
    Noooooossa! É muita coisa, não é mesmo? Que viagem!
    Fiquem bem, e o de sempre, mas sempre mesmo vou desejar com todo o meu ardor, que Deus lhes proteja e que Nossa Senhora os cubra com Seu Manto!

  4. Maria de Fátima do Prado Valladares disse:

    Na Folha de São Paulo, dia 15 de março último saiu: “Ciclovias são opção saudável para tour e Montevidéu. Trabalho de ONG (www.urubike.org e UNESCO)incentivou o uso de bicicletas pela cidade, que tem um circuito com quatro itinerários. destaque fica por conta do trajeto que passa pelo centro histórico e pela zona urbana, seguindo o rio da Prata.”
    Conta a reportagem que o termo “rambling” não existe nem em inglês nem em espanhol. É uma gíria local que define o pedalar pela rambla, o calçadão da capital do Mercosul, que margeia o rio Prata.
    A reportagem é muito boa. O projeto alenta e inspira, e dá esperança. Tentem entrar no site da Folha nesse dia. O caderno é o de Turismo.
    Beijos.

  5. Fabio Rech disse:

    Ola, conversei com voces quando passaram por Prudentopolis-PR e desde entao acompanho os comentarios no blog intervalo no esporte…muito legal essa parte de voces no Paraguai…sorte e muito boa viagem…

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