Arquivo do autor:Fabrício Muriana

Missiones, Corrientes e volta ao Brasil.

Terminado o trecho do Paraguai, cruzamos para o lado argentino com as bikes num busão lotado e chegamos em Posadas num domingo à noite, se me lembro bem.

Como levar uma bike quando o exército proíbe a passagem.

Posadas, capital da Província de Misiones, tem exatamente a mesma pegada de todas as cidades médias ou grandes argentinas que encontrei até aqui. Quadras quadradinhas, de 100 metros cada. Cafés, parrillas, bancos, praça central, chineses… Fomos parar nos bombeiros da cidade, desavisados de que eram militares. Até aqui, todo o contato com os militares da Argentina pode ser qualificado como péssimo (vide a proibição de atravessar com a bicicleta) e no caso dos bombeiros da cidade de Posadas não foi diferente. Perguntados se poderíamos passar duas noites no quartel, o bombeiro lançou um “no hay drama” e fomos direcionados a um quarto de entulhos. Nele, estava um desses carrinhos de mão que se usa para carregar pesos grandes e um monte de coisas velhas do bombeiros. Arrumamos um canto pra dormir no mínimo espaço que havia e passamos a noite no local. No meio da noite, uma pessoa veio retirar o carrinho de mão e vi que era o outro ciclista sobre que os bombeiros tinham avisado.

Carrinho em que o Moizés levava as coisas dele.

Já em Encarnación, o secretário de esportes da cidade avisara que estava um ciclista equatoriano na cidade, mas não o tínhamos encontrado. Moisés era o nome do primeiro cicloviajante que encontraríamos. Um cara estranhíssimo, não só pela adaptação grosseira que fez no seu equipamento para sua viagem de bike, mas também por uma série de encanações com defesa pessoal (como ter um estilingue e treinar quedas da bike) que nunca foram (nem acho que serão) uma preocupação nossa ao longo da viagem. A princípio falou que queria fazer um record no Guinness, depois disse que pegava carona com frequência. Enfim, com o Moisés, ficou claro pra mim o que pode acontecer quando nos isolamos por muito tempo das pessoas.

A noite continuaria longa, quando às 6h30 da manhã um bombeiro veio pedir que nos apresentássemos ao comandante. Desci e qual não foi a surpresa ao saber que o tal comandante ainda não tinha chegado. Voltei a dormir e lá pelas 7h30 o mesmo soldado veio nos chamar pra fazer a apresentação. Descemos, dessa vez os dois, e o tal comandante ainda não havia chegado. Era só pra causar transtorno que a tal apresentação era solicitada. Entendemos o recado, arrumamos as coisas e seguimos pro centro, em busca da secretaria de esportes.

Isso de estar aberto a qualquer coisa que possa acontecer e de às vezes não ter mais alternativas, muitas vezes nos deixa sem uma perspectiva clara de como será o final do dia. Mas acho que é exatamente isso, o esvaziamento das possibilidades concretas, que nos faz chegar a outro lugar de abertura com as pessoas. No caminho da secretaria, uma mulher nos perguntou de onde vínhamos e fez questão de nos acompanhar até o gabinete do secretário de esportes da cidade. Menos de meia hora depois de sermos quase expulsos pelos bombeiros, eu estava tomando um mate com o secretário de esportes da cidade. Ele nos daria alojamento no anfiteatro da cidade por quantos dias quiséssemos.

Secretário de Esportes e a mulher que conhecemos na rua.

Hotel, casa, cachoeira, quartel do exército, bombeiros, fundos de um estacionamento e agora domiríamos no subsolo de um anfiteatro com vista para o Rio Paraná e a Orla da Cidade de Encarnación. Lugar incrível e inexplicável que tenha um alojamento. Passamos duas noites nesse lugar e pude fazer vários rolês pela cidade.

Vista da Orla de Encarnación, a partir de Posadas.

O que acho que mais me marcou da cidade de Posadas foi a clara distinção de raças que compõem o povo argentino e o povo paraguaio. Foi só cruzar uma ponte e deixamos de ver uma população majoritariamente indígena e passamos a ver sobretudo descendentes de italianos e espanhóis. O que os Argentinos fizeram com os índios dessa região ainda fica como incógnita, mas definitivamente é estranho.

Seguimos então pra cidade de Gobernador Virasoro, já na província de Corrientes. Em Misiones, as estradas tinham acostamento e, apesar do altíssimo movimento de caminhões e das lombadas no acostamento, era tranquilo seguir. No exato momento em que passamos a placa que anunciava a chegada da província de Corrientes, acabaram os acostamentos e tivemos que dividir pista com os caminhões. Foi um dos pedais menos prazerosos que já fiz, no limite de um torcicolo de tanto que tinha que olhar pra traz e descer pro mato com a bike super carregada.

Valeu por avisar!

Lembre-se: Ruta 14, desviar.

Em Gobernador Virasoro falamos com uma pessoa da prefeitura que nos deu abrigo no ginásio da cidade. Aí escutamos sobre a Fábrica de Erva Mate da marca Taragüi, que fica a poucos kilômetros da cidade. No dia seguinte, passamos na fábrica e foi legal conhecer um pouco mais da fixação de Argentinos, Uruguaios e Rio Grandenses pelo mate, uma erva originariamente das américas, consumida antes pelos índios e agora por todos. Voltamos à tarde pra estrada horrorosa e o pedal não rendeu muito. Paramos num posto e decidimos cruzar pro Brasil. Lá pelas 10 da noite saímos em direção a Santo Tomé, porque o fluxo da estrada finalmente tinha baixado. Realmente aí o pedal rendeu e chegamos na fronteira com São Borja lá pelas 2h da manhã.

Depois de buscar informações numa boate, seguimos em direção dos bombeiros que nos receberam e neste ponto começa o trecho do Rio Grande do Sul.

Fim do Paraguai – San Cosme e Encarnación

San Cosme foi um lugar primoroso de visitar pela história das dunas, pelo isolamento e pelas missões jesuíticas de Boaventura. Saímos da cidade depois de dois dias de acampamento e fomos diretamente a Encarnación, terceira maior cidade do Paraguai.

Orla

Ao fundo, a cidade de Posadas, do outro lado do Rio Paraná.

Apesar de bem maior, Encarnación tem um jeitão de cidade do interior do Brasil. Como já comentei no último texto, Encarnación sofreu uma reforma urbana recente, que reconstituiu sua centralidade e inundou uma parte da cidade. Fronteira com a Argentina, a cidade tem um comércio abundante, embora não comprável em escala com o de Ciudad del Leste e uma sensação de segurança inigualável no Paraguai. Não é exagero dizer que Encarnación é o exato oposto dos nossos preconceitos com relação ao Paraguai.

Chegamos à noite e procuramos a prefeitura, que estava fechada. Logo ao lado havia uma delegacia, onde os policiais nos indicaram os bombeiros voluntários amarelos de Encarnación. Sim, a profissão de bombeiro no Paraguai é mais uma predisposição do que profissão propriamente. Do comandante ao que recém entrou para o corpo, todos são voluntários. E ainda existem bombeiros amarelos e azuis, que se separaram nacionalmente em dois grupos de gestões independentes.

No quartel dos bombeiros amarelos

O quartel dos bombeiros amarelos ficava anteriormente na região que foi alagada. O terreno atual era emprestado pela Usina de Yacyretá. Nele, os bombeiros mantém 3 caminhões, todos importados. Um do Japão, um da Inglaterra e um da Holanda. O caminhão inglês tem direção do lado direito do motorista. Impressionante a adaptabilidade dos bombeiros paraguaios.

Nas três noites em que estivemos no quartel, resolvi problemas mecânicos, tomei sorvete pra caramba e dei uma entrevista pra Rádio Encarnación, a primeira da viagem. O filho de um dos locutores estava assistindo, então pedi que ele gravasse a entrevista com meu celular. Ficou meio tremido mas o resultado é esse aqui:

A parte que provavelmente se tornará o principal atrativo turístico de Encarnación é a novíssima orla, construída pela prefeitura com grana da Hidrelétrica de Yacyretá. Exemplo de como a construção do discurso oficial se faz a partir da perspectiva dos vencedores, a orla é enxergada como algo sensacional pela maior parte dos moradores da região.

Claro que fomos de bike pra praia

A tal da Orla

Pertinho de Encarnación, estão as ruínas de Trinidad e Jesús, as últimas que visitamos num dia inteiro de pedal. Infelizmente a quantidade de informações no local das ruínas era insuficiente, jogada que claramente força o visitante a ter que pagar um guia, além de pagar a entrada das ruínas. Fiquei só com as fotos e as interpretações livres. Tá valendo:

Jesús:

Campanário

No penúltimo dia, fomos checar a informação da proibição do cruzamento da ponte entre Encarnación e Posadas para pessoas em bicicleta e a pé. Definitivamente a mais surreal das proibições que encontrei em toda a viagem, esta normativa partir do exército Argentino, “por un tema de seguridad”. Fui até o lado Argentino sem a bicicleta para conversar com o oficial, e ao menos pareceu que ele fez o que pode. Ligou pro seu superior, questionou, mas prevaleceu a proibição. Terminada a conversa, deixei claro pra ele que a proibição era surreal, uma vez que por um “tema de segurança” a bicicleta não oferece risco nenhum. E se o problema era que a bicicleta era lenta, que tal avisar os motoristas de que uma bicicleta lenta vai passar?

Esse foi nosso primeiro contato com o lado argentino.

A experiência das hidrelétricas

Mesmo distante uns 1500 kilômetros da última hidrelétrica do Paraguai, continuo marcado pela experiência de ter visto alguns impactos causados por essas gigantices que fomos, humanos, capazes de produzir. Pra quem ainda não foi apresentado, uma usina hidrelétrica é aquela que gera eletricidade transformando a força da movimentação da água em energia elétrica. O Brasil usa muito essa matriz energética e somos ensinados desde cedo que essa é uma energia limpa.

O que esquecem de comentar, em geral, é que essas usinas são intervenções humanas no rumo das águas. Ou seja, não é possível fazer uma usina hidrelétrica sem afunilar a vazão das águas, de forma que se consiga o máximo de pressão da correnteza e da gravidade, gerando mais energia. A solução pra esse afunilamento em geral é a cisão do curso do rio. Constrói-se uma imensa represa cujo único fim é fazer com que a água ganhe mais força de correnteza e de gravidade. Essa imensa represa constuma cobrir cidades, biomas, comunidades ribeirinhas e, às vezes, litígios históricos, massacres populares e cataratas monumentais.

A usina de Itaipu, maior em geração de energia do mundo, localiza-se no rio Paraná, próximo da fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Leste. Binacional, Itaipu nasce de um acordo entre Brasil e Paraguai e tem sua energia dividida igualmente entre os dois países. O Paraguai usa atualmente somente 8% da capacidade de Itaipu para abastecer 90% de sua população. Os outros 42% a que tem direito são vendidos ao Brasil a valores muito, mas muito abaixo dos valores de mercado. Com seus 50% de direito e os 42% comprados a preço de banana do Paraguai, o Brasil abastece 20% da nossa necessidade elétrica. Por aí já temos uma ideia da desproporção territorial entre os dois países.

Aqui começa uma reflexão: você, que está usando seu computador ou celular pra ler esse post e o microondas pra esquentar uma lazanha congelada, depende de obras faraônicas como Itaipu para existir. Nossa necessidade de energia é diária, constante e obrigatória para a maneira como vivemos. Esse é um das questões das usinas hidrelétricas, elas permitem uma forma de existência muito confortável (para quem pode pagar por energia).

No entanto, o custo ambiental dessa energia é o aumento da temperatura de regiões inteiras (vide os 4 graus que a cidade de Foz do Iguaçu ganhou após a construção de Itaipu), extinção de espécies de peixes que dependem da desova após nadar contra a correnteza (porque obviamente não é possível nadar no sentido inverso das turbinas de energia), expulsão da população que dependia essencialmente da pesca ou indiretamente da fauna da região inundada. Além desses impactos para a população e biomas locais, obras faraônicas, sobretudo no Brasil, são normalmente executadas com condições subhumanas de trabalho, alta quantidade de acidentes e praticamente nenhum planejamento quanto ao que vai ser feito da população que trabalha na sua construção (vide Brasília, a simbólica capital do nosso país).

É curioso notar como alguns dos impactos são previstos na própria construção das usinas, mas a solução deles, mesmo que de forma insuficiente, vem só muito depois da construção. Por exemplo, o curso das águas pode receber um caminho alternativo para que os peixes possam subir a correnteza. Mas no caso de Itaipu, esse caminho só foi feito mais de 20 anos depois do represamento. No caso de Yacyretá – usina hidrelétrica também binacional, também com águas do rio Paraná, mas na fronteira entre Paraguai e Argentina – criou-se uma espécie de elevador de peixes, para fazer a reconexão dos cursos. A população local conta que esse elevador é acionado só em dias de visita de políticos.

Outro impacto óbvio da presença das usinas é o que vai pra baixo d’água. Entre as cidades de Encarnación, no Paraguai, e Posadas, na Argentina, está o final do Rio Paraná, início da represa da usina de Yacyretá. A área às margens do rio foi totalmente inundada nas duas cidades, o que permitiu a transferência de indesejadas favelas, a criação de praias artificiais e o redesenho da centralidade das cidades. Em Encarnación, se você quiser nadar, existem tramos habilitados e inabilidatos. Os primeiros, são aqueles em que há investimento massivo da usina, por meio de ações junto à prefeitura, para que se forme uma espécie de orla artificial que se parece muito com uma cidade praieira. Os inabilitados são aqueles que ainda guardam em suas profundezas as casas de moradores que habitavam a região mais próxima da margem do rio. Seria o mesmo que dizer “não nade aqui, se não quiser pisar em telhados”.

A decisão de onde exatamente colocar as usinas normalmente passa por critérios que não são nada claros. Neste exato momento, o Brasil está construindo uma hidrelétrica na Amazônia (!!!!), local de reservas indígenas, bioma inigualável, tudo isso em Belo Monte, Pará. Antes disso, já construímos uma hidrelétrica que inundou a cidade histórica de Canudos, local onde aconteceu um dos mais importantes movimentos populares de vida comunitária e resistência e, posteriormente, um os maiores massacres populares – orquestrado pelo próprio governo – de nossa história. A própria Itaipu poderia ter sido construída em outros trechos do rio Paraná, inclusive integralmente no Brasil. No entanto, a usina foi construiída na fronteira com o Paraguai, o que dá margem para que vejamos essa decisão como uma espécie de acerto de contas histórico, visto que o Brasil foi um dos protagonistas do genocídio conhecido como Guerra do Paraguai, em que matamos (nós, Argentinos e Uruguaios) 90% da população masculina do Paraguai.

Essa escolha de local inundou também uma das maiores cataratas do mundo. Perto de Itaipu é fácil conseguir informação sobre as sete quedas, e no lado do Paraguai, a mesma cachoeira era conhecida como Salto Guairá. A cidade de Guaíra, no Brasil, fica exatamente ao lado de onde era esta cachoeira, hoje visível somente aos peixes que restaram nessa região. O que se escuta no Paraguai é que essa era uma área de litígio entre Brasil e Paraguai. Como se sabe, o Paraguai perdeu muitas regiões depois da Guerra. A província de Missiones e parte das províncias de Corrientes e de Santa Fé na Argentina eram território paraguaio. A cidade de Cuiabá era território paraguaio. E a região do Salto Guairá também estava entre esses territórios tomados, mas com uma represa monstruosa ninguém tem mais dúvida de onde termina o Paraguai e começa o Brasil.

Nunca veremos

Um dos lugares mais impressionantes que visitei foi a cidade de San Cosme y Damián, Paraguai, que abriga Ruínas Jesuíticas e está à margem da represa de Yacyretá. Neste trecho, são quase 40 kilômetros de uma margem até a outra. Quase no meio da represa, encontram-se dunas que são totalmente inimagináveis a quem olha o mar em que se tornou a represa. Essa dunas eram parte da paisagem nativa, composta por dezenas de ilhas no Rio Paraná. Algumas delas com dunas e a maior parte com vegetação nativa. O que vemos hoje é o que restou: apenas duas dunas, as mais altas, que gradualmente estão sendo carregadas pela represa.

As dunas de San Cosme y Damián ainda são visitáveis. Mas corra, porque ano a ano elas vão perdendo areia para a represa. A pergunta que resta é: quanto vale o nosso conforto? Ou por outra, se falamos em termos de progresso, então progresso de quem? Para onde? A que serve? Usinas hidrelétricas são o tipo de construção que demonstra o quanto estamos plenamente dependentes de uma forma de vida. E será que essa forma de vida fomos nós que escolhemos?

Ps: esse é o tipo de texto que me interessa publicar em outros lugares. Como este, escrevi também, de forma mais ficcional, um texto sobre o Parque do Zizo. Se você souber de publicações onde interessa receber esse tipo de texto, por favor entra em contato.

Ps 2: Pequeno vídeo em que o condutor do barco que nos levou até as dunas comenta sobre como os problemas poderiam ter sido evitados:

Algumas charges e tiras

Antes de retomar as postagens propriamente, cabe tirar alguns esqueletos do armário.
Quando estava para sair em viagem, fiz uma pequena seleção das charges e tiras que mais davam conta da angústia de se manter sempre trabalhando. Hoje, olho pra essas charges com algum distanciamento crítico, e vejo que elas já não me representam mais. Mesmo assim, ainda como uma arqueologia do que eu fui, vale a pena vê-las novamente. Por isso posto-as abaixo.

Primeiro uma do Laerte, quando ele ainda usava os personagens.

Caco Galhardo e o ambiente de trabalho.

Essa aqui abaixo também é do Laerte e foi meu fundo de tela até sair pra viajar.

E essa abaixo eu nunca achei o autor. Se alguém souber, por favor me avise.

Paraguai – parte 2

No último dia em Asunción, recebemos a notícia da morte da Julie Dias. Como já foi dito, muito pouco tem sido feito na cidade para a segurança dos ciclistas, embora haja leis pra isso. E é sempre uma tristeza e um vazio grande quando vemos alguém mais próximo do nosso cotidiano tendo a vida ceifada por falta de vontade política. Colocando a culpa em quem me parecem ser os verdadeiros culpados, falta de vontade política da prefeitura de São Paulo, também do cada vez mais irrelevante Ministério das Cidades, e por fim da CET, que não autua motoristas pelo artigo 201 do CTB (1,5m de distância mínima entre carros e bicicletas). Eu sei que muito mais gente, além dela, já se foi sem sequer ficarmos sabendo, mas é traumático lembrar que aquela moça sorridente que estava em Santa Maria Madalena no décimo encontro nacional de cicloturismo não estará mais neste ano. Por conta do atropelamento, decidimos homenagear da forma como podíamos a ciclista morta.

Vida segue. Pé na estrada em direção a Encarnación, onde terminaria a nossa viagem pelo Paraguai. No caminho, a primeira cidade onde posamos foi Quiindy, em cuja prefeitura dormimos. Acontecia um aniversário de 15 anos no salão e fomos convidados pelo pai da debutante a comer com eles, tomando uma Fanta Piña (no Paraguai tem Fanta laranja, abacaxi e guaraná. Não tem fanta uva, porque foi proibido pelas autoridades sanitárias do país). Começamos a encontrar desenhos de cidades um pouco diferentes, com aquela igreja central que vemos nas cidades do interior do Brasil. Um grupo de uns 10 moleques ficaram mais de duas horas conversando conosco na sorveteria, enquanto esperávamos o fim do jogo do Olympia (um dos times mais populares do país). Fim do jogo e o guarda da prefeitura liberou que colocássemos nossas coisas numa das salas.

Levantamos cedo e seguimos o trajeto, passando por Villa Florida. Há um rio, cujo nome já não lembro e que não consta no Google maps, que cruza o centro-sul do Paraguai. Nele, existe uma praia que é bem buscada por veranistas, já que a temperatura frequentemente ultrapassa os 40 graus (como aconteceu no dia em que passamos na cidade). Como era uma segunda-feira, foi só largar a bike de canto e cair na água, com quase ninguém nas praias.

Conhecendo Villa Florida

 

Descanso pra magrela.

Almoçamos e pedi o Surubim, peixe do rio Paraná, que tanto queria comer desde que estávamos em Asunción. No restô, encontramos um casal que nos comentou sobre as ruínas jesúítcas do país. Estávamos nos aproximando das região onde aconteceram as Missões dos Jesuítas no XVIII, cujas ocupações e expulsões foram decisórias para definir as fronteiras de Brasil, Paraguai e Argentina. Terminaríamos o dia no Quartel da Cavalaria do Exército do Paraguai em San Juan Bautista. Os milicos nos cederam uma casa de hóspedes próxima do quartel, onde passamos a noite para seguir viagem. A dona do restaurante de mais movimento da cidade é uma brasileira expatriada que mal se lembrava do português. Estranhíssimo falar com alguém que é do seu país mas que não lembra a língua natal.

O terceiro dia de pedal seria ainda mais legal que os anteriores, quando rumamos pra San Ignácio e terminamos em Santa Rosa. Em San Ignácio, há um museu sobre as missões, que estava fechado quando chegamos. Terminamos visitando o museu dos heróis da cidade que lutaram na Guerra contra a Bolívia (em que, lembre-se, o Paraguai ganhou, mas perdeu território). O Affonso encontrou uma casa das vítimas do regime ditatorial do Paraguai, onde falei com um senhor que havia sido preso e torturado pelo regime de Alfredo Stroessner. O senhor me mostrou o manual de ensino das escolas das ligas agrárias, todo escrito à mão e mimeografado, com os textos em Guarani e as imagens feitas pelos próprios professores e estudantes. A região da missões foi também o principal foco das ligas agrárias no Paraguai, movimento liderado por padres jesuítas do exterior e do Paraguai e que fomentou a união e emancipação de trabalhadores locais. Esse movimento social e seus líderes foram brutalmente perseguidos pelo governo ditatorial a partir de 1976. O Paraguai já tem uma comissão da Verdade bem organizada, que inclusive é a que mantém esta casa que visitamos. Já o Brasil…

Capa do manual escolar das ligas agrárias do Paraguai.

Se liga nas ilustras e no guarani.

Saí da casa das vítimas e fui encontrar com o Affonso, ainda esperando o museu dos jesuítas abrir. Notei que meu pneu estava furado e comecei a trocar a câmara. Nisto, uma moça de moto, de nome Sara, estava na porta esperando sua mãe, pra levar de carona. Não sei bem como começou, mas sei que quando vi, o Affonso estava falando com ela. Chegou a mãe e uma hora depois estávamos com a família, compartilhando um tereré. Foi uma das tardes mais legais que passamos no Paraguai. Só sei que esquecemos um pouco da hora e às 17h30 saímos da casa da família da Sara e seguimos em direção de Santa Rosa (reparou que nem fomos no museu jesuítico?). Nesta cidade, dormimos no ginásio de esportes e pudemos visitar um único prédio conservado das missões.

Ruína de Santa Rosa.

O quarto dia de pedal tinha caminho incerto. Chegamos numa bifurcação em que era possível ir a Coronel Bogado, ou virar e andar mais 30 km pra San Cosme e Damián. Decidimos almoçar em Coronel Bogado e voltar para a bifurcação pra passar a noite em San Cosme. Pedal de dia inteiro dessas coisas. Tivemos que andar 20 km a mais por conta disso, mas San Cosme estava a 30 km da bifurcação e tardaria mais 1,5h pra almoçarmos, fora que era arriscado nem encontrarmos mais comida. Alimentação é uma parada que volta a ser vital nesses dias. A estrada pra San Cosme, depois do almoço, era de mão dupla e sem acostamento, mas passava um veículo a cada 10 minutos, então foi um pedal super gostoso de fazer. Chegamos à cidade e jantamos no restaurante da Alba. Conversando com a família dela, convidaram a gente pra usar o quintal deles como acomodação, o que prontamente aceitamos. Fomos ao museu, ao lado das ruínas, mas infelizmente o mirador das estrelas da cidade fechava muito cedo, às 21h. Na volta, Alba nos comentou sobre as dunas do rio Paraná, onde tentaríamos ir no dia seguinte.

Decidimos ficar em San Cosme, para conhecer o mirador e as dunas. Impressionante como foi necessário eu ir para o Paraguai, visitando ruínas jesuíticas para pela primeira vez na vida olhar para o espaço num planetário. A visita ao museu, pela manhã, foi extremamente bem guiada e pudemos saber sobre Buenaventura Suárez, padre jesuíta nascido na Província de Santa Fé, na Argentina, quando essa ainda fazia parte do Paraguai. O cara estudou astronomia na Espanha e voltou pro Paraguai, para liderar algumas das missões. Primeiro astrônomo da América Latina, até hoje as previsões feitas por Buenaventura continuam bastante precisas. Por conta disso foi criado esse planetário onde fizemos observações aos céus de dia e de noite.

Nossa guia, ao lado de um brinquedo que eu tinha que ter tido quando era pequeno.

Esperando a noite chegar pra olhar o céu.

Destino:

No almoço, descobrimos que não seria possível visitar as dunas do Rio Paraná, porque haviam feito um passeio pela manhã e não havia outro marcado. Como o custo do passeio era muito alto (cerca de 600 mil guaranis, divididos por todos os que fizessem a visita), não seria possível para eu e o Affonso pagarmos tal valor (cerca de uns 240 reais). Conversamos com a Carolina, que organiza o passeio e falamos sobre a publicação no blog e talvez em outros veículos. Então ela fez um desconto para jornalistas, colocando o preço de custo de 300 mil. Alba, que estava nos hospedando, e sua filha Viviane quiseram ir e pagaram parte do valor. No dia seguinte, estávamos rumando para as dunas do Rio Paraná, que não só por sua beleza, mas por sua história e pelo compromisso que firmei com a Carolina, merecem um outro post.

Daqui a pouco voltamos.

 

 

Paraguai – parte 1

Tentando relembrar o que foram as últimas duas semanas, tudo se embaralha. Estradas, países, fronteiras, pessoas, nomes, locais onde dormimos, comidas, mates e tererés… O registro contínuo se faz obrigatório porque o acúmulo é certo depois de poucos dias.

Meu atraso não pode ser justificado, mas ao menos pode ser compreendido por conta do pau que meu computador teve. Como sei que alguns cicloviajantes e pessoas que querem colocar o pé na estrada acompanham esse blogue, vale dizer que planejei levar meu computador antigo, que tem garantia estendida de 3 anos. Até aqui, tudo certo que ele tenha dado pau. Vamos ver o que a garantia me conta quando chegarmos em Buenos Aires.

Escrevo hoje da pequena cidade de Itaqui, que fica entre São Borja e Uruguaiana, todas as três às margens do Rio Uruguai. Extremo sudoeste do Brasil e fronteira com a Província de Corrientes, na Argentina. Acho que o último registro mais preciso que fizemos foi em Asunción, ainda abalados com a morte da Julie Dias.

Antes de lá, havíamos cruzado o Paraguai em três dias, entrando por Ciudad Del Este, posando em Campo Nueve, San Jose Del Arroyo e terminando em Asunción. Nesta última, fomos recebidos pelo Giulio Andreotti, músico e morador de Asunción, que faz parte do Couchsurfing. Ficamos em sua casa por três dias e saímos em direção a Encarnación, no extremo sudeste do Paraguai. No caminho, posamos em Quiindy, San Juan Bautista, entramos em San Ignacio, posamos também em Santa Rosa e duas noites em San Cosme y Damián, para enfim chegar a Encarnación.

Este trajeto nos interessava para poder conhecer minimamente o Paraguai, país por onde poucos brasileiros viajam e por onde ainda menos cicloviajantes se arriscam. A última palavra foi escolhida porque nossa imagem do Paraguai nos sugere que viajar por lá é um risco. Depois de cruzar o país e coltar, não direi o contrário, mas devo dizer que o risco é bem menor do que imaginávamos. Já nos primeiros dias, ficamos realmente surpresos (pra não dizer chocados), ao ver meninos de 13 ou 14 anos andando de moto. Nem vou dizer que estavam sem capacete, porque os adultos também não o usam, com exceção de Asunción e Ciudad Del Este. As motos são extremamente populares no interior do Paraguai, sendo os motoqueiros os que ocupam a posição de “oprimidos”. Posição que costumeiramente nós ciclistas ocupamos em cidades onde as bikes começam a aparecer. Por incrível que pareça, o caos geral causado pela quantidade e os múltiplos usos feitos da moto faz com que a média de velocidade seja mais baixa e também com que as motos estejam quase sempre no acostamento. Como cruzamos todo o Paraguai usando os acostamentos, era comum ser ultrapassado por uma delas numa daquelas finas que normalmente levamos de carros. A boa nova é que, se caíssemos, o acidente provavelmente não seria fatal. Nada aconteceu, mesmo com pessoas circulando pelos acostamentos, motos vindo na contramão, motos com famílias inteiras (vi até com 4 pessoas) e motos pilotadas por crianças. Parece, de novo, que o caos do trânsito de lá obriga as pessoas a irem mais devagar e tomarem mais cuidado.

Tipo de imagem corriqueira na Ruta 2 Fonte: http://www.abc.com.py/nota/asi-se-maneja-por-ruta-2/

A maneira como as cidades do interior do Paraguai se desenvolveram também é bem peculiar. No Brasil, estamos acostumados a pegar um acesso ou um trevo para entrar numa cidade. No Paraguai, na grande maioria das vezes, a própria estrada é a avenida principal da cidade. Giulio nos explicou que isso foi um problema de planejamento das pistas, que foram construídas exatamente sobre as antigas rotas de tropeiros, diferente das estradas brasileiras que foram construídas próximas, mas ao lado das cidades. O resultado é um misto de marginal, com cara de interior e com muitas homenagens aos mortos na estrada. No princípio, achei que o Paraguai teria a mesma quantidade de cruzes que no Brasil, mas logo no primeiro dia já desisti de registrar todas as cruzes que encontrávamos. Como disse no post anterior, a sensação é de andar por um grande cemitério.

Estávamos apreensivos quanto a onde terminaríamos dormindo, uma vez que fomos diversas vezes recepcionados pelas prefeituras e secretarias de esportes no Brasil. Por lá, no primeiro dia encontramos um brasileiro que mora no Paraguai há décadas e que nos permitiu armar a barraca no seu quintal. A cidade era Campo Nueve (ou Doctor Eulogio Estigarribia, como renomearam, mas todo mundo chama de Campo Nueve). Antes de chegar na casa, o Affonso ficou pra trás, enquanto eu seguia a moto do brasiguaio. Foi a oportunidade de usarmos pela primeira vez os radinhos que compramos em Foz do Iguaçu, exatamente pro caso de nos separarmos. Conhecemos toda a família do nosso anfitrião, ganhamos uma hamburguesa, dormimos cedo e partimos pra San José Del Arroyo.

Nesta cidade, fomos recebidos pelo diácono da igreja local. Armamos a barraca numa espécie de palco anexo à igreja, onde o ar era fresco de noite, mas que descobrimos ser uma área bem aberta à circulação de pessoas. Tivemos que revezar cuidando das coisas, o que não foi muito difícil já que não havia nada o que fazer na cidade. O curioso foi receber uma jarra de suco espontaneamente da vizinha da igreja. Eu e o Affonso às vezes brincamos que estamos jogando Zelda e que ganhamos alguns itens. Em Ponta Grossa, o Cláudio nos presenteou com duas meias de dedos, melhores para o frio. Em Cascavel, o Túlio deu Malto Dextrina ao Affonso, que serve pra repor carboidratos. Em Ibema, o Affonso recebeu um tupperware grande de comida de uma mulher e mais 10 reais de um senhor. Mais pra frente, conto também dos itens que perdemos pelo caminho.

Meias de dedo!

Ainda em San Jose del Arroyo, um raio da roda traseira do Affonso estava quebrado. E pra nossa total surpresa, não havia bicicletarias na cidade. Nenhuma. Veja como faz sentido: a criança com 12 anos já está aprendendo a usar as marchas na moto. Em todos os lugares, só existem borracharias e nenhuma bicicletaria. O calor nessa região variava entre 28 e 37 graus. Tudo isso colabora pra que não haja demanda por bicicletas, tampouco por bicicletarias. Não tínhamos a ferramenta pra sacar o cassete, e o Affonso tentou resolver com um cara que arrumava motos. Não rolou o improviso e não tínhamos confiança pra ele rodar 103 km até Asunción com o raio quebrado. A solução foi ele ir de ônibus e eu ir sozinho de bicicleta.

Saí de San Jose tarde, lá pelas 11h. Cheguei a Asunción, depois de uma parada pro almoço e três pra tomar sorvete, quando a noite já chegava. Logo na entrada, já encontrei com um mecânico que relembrou a Guerra do Paraguai. Essa imagem da guerra, bem como a guerra contra a Bolívia, forjaram o imaginário e a identidade nacional (ao menos pelo que eu pude ver) e estarão presentes durante toda a nossa passagem pelo país. Cheguei no apê do Giulio e o Affonso já estava por lá. Alguns dias de wi-fi, cidade grande e cervejas nos esperavam.

Entrando em Asunción - registro da gopro

Ficamos ao todo 3 dias e 4 noites da casa do Giulio, nas quais fomos convidados todos os dias pra sair ao pub mais próximo, com a ilustre companhia do nosso anfitrião. Giulio é editor de uma TV local e músico da orquestra municipal. Mora na região central de Asunción e conhece gente pra caramba por lá (parecia um vereador cumprimentando eleitores a cada esqina). Com ele, fomos a um pub e três restaurantes massa pra caramba. Um dos restôes, o melhor de todos, foi o Lido, que já estava super indicado pelo Gilberto Kyono. Os preços eram bem fora da curva da vida franciscana da estrada, mas nada como voltar um pouco a ter o que era o cotidiano de São Paulo.

Foi também por meio do nosso anfitrião que começamos a ouvir uma outra história do Paraguai, que só vai ganhar forma mais precisa quando saímos do país. Cabe dizer que a Guerra do Paraguai, que estudamos super pouco por aqui, matou 90% da população masculina do país, o que já dá uma idéia do tamanho da destruição que causamos. Boa parte das questões de diplomacia do Brasil são apresentadas hoje como forma de compensar os estragos da guerra, mas no geral o Paraguai continua vendendo quase a metade da energia de Itaipu super barato pro Brasil e continua no caminho do subdesenvolvimento, com seus carros importados quase sem impostos e divisão de terra extremamente concentrada.

Asunción é uma capital caótica como a São Paulo de 10 anos atrás, onde os donos de carro mandam. A única imagem da cidade que me tira esse referencial é a da comemoração do dia dos Heróis. Calhou de estarmos lá nesse feriado e fui assistir os festejos na Praça dos Heróis. Tanto a peça quanto a apresentação de dança referenciavam a morte do Marechal Solano López, assassinado pelo exército brasileiro e que deu fim à Guerra do Paraguai. Saí com essa imagem forte na cabeça: a de uma identidade nacional forjada na morte e nas derrotas. Na Guerra com a Bolívia, o Paraguai ganhou, mas cedeu territórios no acordo de paz, o que também é uma espécie de derrota. No entanto, mesmo assim eles têm um dia para comemorar seus heróis e não há uma cidade por onde passamos que não tenha uma rua “Mariscal López”.

Fim da primeira parte da viagem ao Paraguai.

Ps: As imagens desse post são meio toscas, pq as melhores ficaram presas no backup. Como o backup da apple só serve em outro macbook, to na roça.

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Mais uma ciclista morta na avenida paulista

Em 2009, quando minha bike tinha acabado de ser roubada, aconteceu o atropelamentdo da Márcia Prado na Avenida Paulista. Naquela época, como não estava pedalando, acompanhei as manifestações a pé e tentei saber por uma série de postagens quem era a pessoa que havia sido morta.

Em 2012, Márcia Prado tem um memorial na Avenida Paulista. Além disso, seu nome está marcado na primeira rota cicloturística pro litoral. Recentemente, um grupo foi acompanhar um dos julgamentos do processo. A memória da pessoa e do atropelamento continuam presentes nas listas tanto da Bicicletada, quanto do Ciclotur. Com isso tudo, quero dizer que muito foi feito para que houvesse memória do fato e para que ele não se repetisse.

Hoje, mais uma ciclista foi morta num atropelamento de ônibus na Avenida Paulista. Pelas primeiras fotos, arrisco dizer que ela foi morta a menos de uma quadra de onde morreu a Márcia Prado. Ainda não sabemos quem é, Seu nome era Julie Dias e a conheci neste ano no encontro nacional de cicloturismo em Santa Maria Madalena. Com a caixa de papelão no bagageiro, Julie não era uma ciclista de “lazer”, mas alguém que se transportava de bicicleta. As primeiras testemunhas ouvidas afirmam que o motorista atravessou no farol vermelho, o que, se confirmado, é o mesmo que dizer que o motorista assassinou a ciclista. Cara, só posso dizer que se foi uma moça jovem, muito bonita e de extrema simpatia, que curtia viajar de bike e que vai fazer uma falta do mais grande caralho nos próximos encontros de cicloturismo.

Cabe ressaltar que, de 2009 pra cá, nenhuma faixa especial pra ciclistas foi pintada na Avenida Paulista. Os ônibus continuam circulando do lado direito, aonde os ciclistas são obrigados por lei a transitar. Os carros continuam sendo vistos com frequência acima de 60km/h. A CET continua não autuando pessoas que passam com seus carros a menos de 1,5m dos ciclistas. Em suma, a Avenida Paulista continua sendo simbólica do quanto nossos políticos estão cagando pros ciclistas e pras leis que deveriam estar cumprindo.

Lembro tudo isso, porque passei 4 semanas de bicicleta nas estradas do Brasil e 3 dias nas estradas do Paraguai. E a sensação geral de circular por uma estrada, um espaço feito para os carros andarem a velocidades inumanas, por vezes é a mesma que de passear por um grande cemitério, depois de encontrar centenas de cruzes e monumentos aos mortos em “acidentes”.

Brasil

Paraguai

Avenida Paulista

Ainda sobre São Miguel Arcanjo, Zizo e Resistência.

Quando estive em São Miguel Arcanjo, na casa da Nê Balboni, tentei publicar esse texto numa revista de São Paulo. Acabou não rolando, então publico aqui, com um pouco mais de riqueza de detalhes que o texto original. Fotos de arquivo, minha e da Jurema.

Matias e Abaeté

O ano é 1969. Matias, 24 anos, acordou para mais um dia de muito trabalho. As semanas anteriores haviam sido pesadas, verificando cada detalhe da ação e definindo, tão cifradamente quanto possível, o grupo mínimo necessário. O banco ficava na avenida Paulista, seu grupo não estava muito longe dali, e a polícia estava cada vez mais atenta a esse tipo crime. Na sua cabeça, a certeza de que aquela seria uma entre poucas ações que dariam a base necessária para a retaguarda do comando. Matias lembrava de São Miguel Arcanjo, onde nascera, e onde sua família guardava uma boa quantidade de terras. Lembrava do sertão de sua cidade, onde cogitava treinar um grupo que fizesse seu papel histórico naquele canto do estado. Na mão, um revólver que mais estalava do que atirava. Na ação, nem todos os apelidos eram conhecidos, nem ele próprio os queria saber. Junto dele, estava Manoel – não o apelido, mas o nome – que será importante testemunha da ação.

O ano é 2012. Abaeté, 27 anos, acordou tarde, de uma noite com algum vinho e toda sorte de acepipes naturais: cevada, feijão, pepino, bolo de mandioca e ovos. No café, frutas, um violão, pão caseiro, sucos. Muitas pessoas no sítio UOAEI. Nomes de índios entre todos os amigos: Ungará, Jacira, Jurema, Itaberaba… Preparam-se pra uma expedição ao Parque do Zizo, reserva particular de Mata Atlântica da família de Abaeté, situada em São Miguel Arcanjo, parte da mata remanescente onde também se encontra no Parque Estadual Carlos Botelho. Uma noite ao lado da segunda (ou seria a terceira?) maior cachoeira do estado de São Paulo. 5 pessoas num fusca até a entrada, mais 5 kilômetros de caminhada mata a dentro. Chega uma bicicleta e, em cima dela, Manariru.

Na saída, Matias não está tão tenso quanto esperava. Sua primeira ação poderia ser a única, dependendo dos desígnios da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele sabia que por nada deixaria de fazer o curso de arquitetura e que tudo que havia aprendido na engenharia daquela universidade murada seria útil de alguma forma, até que pudesse seguir o que sentia ser seu talento verdadeiro. Até lá, as armas foram sua escolha para combater um inimigo real, concreto, que parecia estar em todo lugar, no olhar dos civis que os apoiavam, nas batidas em que se cobrava a carteira de trabalho, na ostensiva repressão a tudo que fosse distinto das rígidas, e tantas vezes sem sentido, determinações militares. O fusca seguia na direção do banco escolhido, mas o barulho de sirene faria todos saírem do carro para se proteger. Do carro da polícia, grita Sérgio Fleury, que já os patrulhava há mais de três dias e os seguia desde que Matias entrara no carro.

Abaeté pergunta se Manariru tem experiência com acampamentos, se tem disposição física para passar uma noite desconfortável. Explica que a experiência será de muito silêncio, introspeção. O dono da bicicleta não titubeia em dizer que está preparado, que quer se juntar ao grupo e que talvez faça um relato para a revista da capital sobre a experiência. Abaeté então lhe empresta um saco de dormir e uma blusa. A bicicleta vai na frente, o fusca parte depois de 15 minutos. São 12 kilômetros até a entrada do Parque do Zizo, que está fechada (a chave ficou com o tio Chico, que não estava na cidade). Todos, do fusca e da bicicleta, se reencontram e juntos pulam o portão do parque, confiantes na experiência de Abaeté e na certeza de que aquela é uma reserva particular e que um dos herdeiros liderava o grupo.

Ouvem-se muitos disparos. Um deles, de fuzil, acerta Matias, mas ninguém pôde saber onde, porque o caixão de zinco com seu corpo chega lacrado. Agonizante, Matias é resgatado e jogado no carro da polícia como indigente. Levado até o DOPS, já não pensava mais na infância, nem na arquitetura, muito menos em São Miguel Arcanjo. Sabia que havia a quem proteger, que não lhe dariam tratamento e, àquela altura, só queria algum fiapo de esperança em que acreditar para sobreviver. Mas se a perda de sua vida fosse necessária para poupar outras, estava disposto a entregá-la, mesmo que achasse essa a situação mais injusta que poderia conceber. No DOPS, a primeira hora de sangramento foi infinita. Colocado em uma posição em que podia ver o próprio sangue, pediam-lhe nomes do grupo e ele não os sabia. Perguntavam de pessoas que ele não via há anos e apanhava ao negar cada pergunta.

Nos primeiros passos, o grupo descobre que esqueceu a comida. Somam-se os víveres e temos um caixo de uvas, um saco de castanhas do pará, um pão grande e três cenouras para 6 pessoas e três refeições. Tudo é racionado e o que era silêncio de instropeção, vai se tornando silêncio de quem guarda energia. A natureza completa o banquete com bananas verdes. Todas as relações são ritualizadas. Para começar a caminhada, dá-se as mãos em roda. Para acender a fogueira, dá-se as
mão em roda. Para ir para a cachoeira, todos devem dizer sim. Frente ao imenso jorro de água, distribuído em diversas quedas, o grupo não se contém nos gritos de alegria. Tiram as roupas, nadam, dormem ao Sol, fotografam-se, banham-se e dão-se as mãos, em roda.

Duas horas depois, Matias entra numa espécie de nirvana. Seu pensamento persiste, embora seu corpo já não responda a mais nada. Rubens Tucunduva, delegado que o interrogava, já tinha desistido de jogar-lhe água fria e pede ao cabo que desse um banho no corpo e que o levasse ao Hospital das Clínicas. Matias ouve toda a conversa e pensa que chegou o momento de sobreviver, de talvez ir para Cuba, mas antes passar em São Miguel, abraçar a mãe e os irmãos, explicar por que não entrou em contato nos últimos dois anos, dizer que era arquitetura (já sabia!), que tinha tido amores e que teria outros, que não gostava do cheiro de pólvora, que não vendessem as terras, que queria ouvir os muriquis mais uma vez, que o Lamarca era mesmo aquilo que imaginavam, que esperassem um pouco mais e estivessem prontos porque o mundo não podia ficar daquele jeito pra sempre. Não precisava mais da arma que não atirava direito. Nunca quis matar. Nunca quis morrer.

À noite, fogueira alta, e um grande ritual de benção de objetos pela natureza. Cortam-se folhas de bananeiras, arma-se uma rede e todos encontram seu lugar. Abaeté sabe que aquilo é um oásis, mas que não é mantido com pouco esforço. Tem a certeza de que a própria ocupação da área já era uma posição política. No dia seguinte, mais um banho em nova cachoeira, mais mãos dadas em roda, fotos e a última refeição: 3 uvas, 4 castanhas do pará, 5 pedaços pequenos de cenoura, algumas bananas verdes cozidas e 50 gramas de pão por pessoa. Todos sabem que dormiram mal, que comeram pouco, mas ninguém reclama.

Os legistas Antônio e Irany recebem o corpo de Matias, que fora encaminhado ao Hospital das Clínicas já desfalecido e que está sob a responsabilidade do IML. Causa mortis: tiro de fuzil. Havia, no entanto, outras escoliações, que Antônio advertiu Irany para que não descrevesse, porque não teriam causado a morte. Na ficha, mais informações sobre sua vida do que Matias jamais teria pensado. Já tinham seu nome, sua cidade natal, os nomes dos integrantes de sua família e agora adicionavam o dia em que expirou. Lacrado o caixão de zinco, sua mãe o recebe em São Miguel Arcanjo. O soldado se comisera da mãe que chora, mas não deixa de cumprir a ordem de avisar que aquele era um ladrão, que fora morto como um meliante porque mereceu, que assaltava bancos e que representava um perigo. Diz que não acredita que a mãe o havia educado assim, mas que não pode fazer nada se o indivíduo é ladrão.

Na volta, os 5 kilômetros finais parecem ter dobrado de tamanho. Os roncos dos estômagos faziam um coro mais alto do que os 600 muriquis remanescentes no parque. Abaeté chega ao portão trancado que haviam pulado. Antes de sair, pede que Manariru encha o cantil de alumínio que carregava. O companheiro de guerra o completa, mas não consegue fechar a tampa. Abaeté pergunta se Manariru sabe quem foi Lamarca. Abaeté explica que aquele fora o cantil de Lamarca, quando ele ainda fazia parte do Exército Brasileiro. Lamarca passou naquele mesmo parque fazendo uma das últimas patrulhas com seu batalhão, antes de desertar com a Kombi lotada de fuzis armados leves. Deixara o cantil ao avô de Abaeté, que era guarda florestal. Do avô ao tio, que partiu aos Estados Unidos, e deste para Abaeté, que o mantinha até hoje.

Somente em 1996, Matias será reconhecido como um dos assassinados pela ditadura militar brasileira. Seu nome, Luiz Fogaça Balboni, passa a figurar na página 70 do Livro dos Mortos e Desaparecidos políticos a partir de 1964. Em 1997, ou 28 anos depois da morte, Manoel Cyrillo, que estava na ação, encontra a família do companheiro de luta e explica a que horas tudo aconteceu. Os elos vão se fechando e fica evidente que o rapaz fora torturado antes de morrer. Em fevereiro de 1998, a família recebe 120 mil reais, segundo relatos no site do Parque do Zizo (ou seriam 250 mil dólares, nas palavras de Abaeté), como indenização pela morte do filho. Em 1999, um vereador de Itapetininga propõe que uma rua ganhe o nome de Luiz Fogaça Balboni. No mesmo ano, a família dele decide utilizar o valor da indenização numa reserva conservada de Mata Atlântica em São Miguel Arcanjo – é criado o Parque do Zizo (apelido de Luiz Fogaça Balboni). Em 2011, é criado o sítio UOAEI, mantido por Rafael Vasconcelos Balboni, o Abaeté, onde são desenvolvidos projetos de agricultura sustentável e defesa do Parque do Zizo.

Abaeté diz que é de paz, mas já teve que tirar peixeira pra proteger o parque contra palmiteiros. Relata que a questão fundiária e a grilagem continuam sendo constantes na região, mesmo com a criação do Parque do Zizo e com o Parque Estadual Carlos Botelho. Revolta-se contra a ignorância de quem não entende que uma árvore de palmito demora 12 anos para estar no ponto de colheita. Não se conforma que as pessoas não preocupem que os macacos Muriqui, os maiores da América Latina, estejam em extinção e que aquela área, onde residem, não seja devidamente conservada pelo Estado. Um jovem de 27 anos escolhe o caminho da aproximação do parque e isolamento da cidade, onde toca seus projetos e vivências ligados à natureza. Ao fim de seu desabafo e atento ao cantil que carregava na mochila, emenda: a luta continua, companheiro.

Dois barbudos-bronzeados no templo do capitalismo

A Juliene, minha namorada, colou em Cascavel e Foz do Iguaçu pra encontrar com a gente no carnaval. Desse encontro, saiu um breve relato dela sobre esse lugar absurdo que é a tripla fronteira. Publico o relato abaixo. Depois adiciono fotos.

Viajar de bicicleta bronzeia. Quando encontrei aquele moço galego com quem compartilhei 90% dos meus dias nos últimos anos, quase não reconheci. Barba + sujeira de estrada + muito sol na pele todo santo dia fizeram um rosto novo. Bonito. Marca de uma vida diversa.

De São Paulo a Cascavel foram cerca de 12 horas de viagem de Carnaval em um busão promocional beeeem ruim – quase o mesmo número em horas que Fabrício e Affonso usaram em dias no mesmo percurso. A conclusão é que os motores “pulam” muitas possibilidades nessa vida. E que eles mentem. A velocidade deles mente o tempo da vida.

De Cascavel, partindo da deliciosa casa do Túlio (que nos recebeu pelo Couchsurfing – oba! Obrigada!), seguimos para Foz do Iguaçu – os maluco de bike e eu de busão. Eles chegaram quase uma hora antes de mim em Foz. Eu saí de Cascavel quase 8 horas depois deles.

O quadradinho da janela do ônibus não me impediu de sentir a aproximação do templo do consumo sem impostos (ou quase sem impostos). Ai, o Paraguai. Para o quê?

Desde muitos quilômetros antes da fronteira, outdoors gigantes nos contam tudo o que podemos encontrar no paraíso. Tudo escrito no imperativo. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. A percepção veio meio lenta, distraída – eu estava escrevendo versos sobre solidão. De repente, percebi a cabeça acelerar e notei que eu estava repetindo mentalmente uma série de frases sobre as quais não tinha refletido. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. O melhor “não sei o quê”, o mais novo “não sei o que lá”, o maior “não sei mais o quê”, o mais visitado “não sei mais o que lá”.

Em vez de correr pra Monaliza (a loja campeã em quantidade de anúncios na estrada), corremos para a família ainda desconhecida do Fabrício. Os Muriana são muitos e bons em Foz e não existe sensação mais aconchegante na vida do que casa de vó. E estivemos lindos dias na casa da Muriana, avó de Luiza, Xandinho e Angelo.

 

Nos primeiros dias, trocamos a abundância de produtos pela abundância de água e os meninos trocaram as bicicletas pelo carro na carona da Ju em um dos dias e do Xande no outro dia.

Primeira parada: Usina Hidrelétrica Itaipú Binacional. Além de todo o impacto ambiental que já conhecíamos de ouvir falar e da complexidade das negociações entre Brasil e Paraguai (dívidas de guerra, questões territoriais, etc), uma novidade triste: um pouco acima da Usina, ainda nas águas do Rio Paraná, existia, antes da construção da barragem, Sete Quedas, um conjunto de quedas d’água provavelmente maior em volume do que as mundialmente conhecidas Cataratas do Iguaçu. A belezura toda foi afundada 1982, como resultado do trabalho de mais de 40 mil pessoas que construíram Itaipu.

Segunda parada: Cataratas do Iguaçú, passeio pela estrutura do lado argentino das Cataratas – ponto de vista mais privilegiado que o nosso. É praticamente impossível explicar o que é uma queda d’água daquele tamanho. Os olhos ficam cheios e ainda sobra água pra ver. Nas junções entre quedas, às vezes, fica impossível estabelecer fronteiras, tudo se confunde, a visão fica bagunçada, a água puxa o olhar pra baixo até o rio. É coisa demais pra olho humano. Uma das coisas mais bonitas que já vi na vida.

Nada me tirava da cabeça a imagem puramente idealizada do que deveriam ser as Sete Quedas, que deixaram de existir por decisão humana e em nome do “desenvolvimento”. Fabrício fez uma observação que ainda me assusta: de certo modo, parece que a barragem de Itaipú mimetiza as Cataratas, copia (feiamente, convenhamos) a natureza, as barreiras naturais. Quase daria pra confundir, se uma coisa não fosse relativa a vidas e outra relativa a mortes (145 de trabalhadores, segundo um dos operários que fez parte da construção e nos acompanhou na visita. Sem contar peixes, pássaros, onças, …).

E falando em coisas relativas à morte… vistas as cataratas do rio Iguaçu (e a histeria turística de fotos e poses em seu entorno), o resto… o resto é comércio. O resto é dinheiro. O resto é trabalho absolutamente indigno, mal pago, mal valorizado, mal aplicado, mal planejado de Ciudad del Este. O resto é uma vontade contraditória de que o rio invadisse justamente aquele lugar fronteiriço em que o sistema de valores que vivemos ganha vida em cada cantinho e se mostra, pelo menos pra mim, enorme e poderoso. O resto são pessoas virando mercadoria, trabalho virando mercadoria, vida virando mercadoria. Cotação de dólar, cheiro de desconfiança, seguranças hiper-armados contra-quem? O resto é a pressão para que você tente ter tudo aquilo de que você não precisa. O resto é, portanto, relativo à morte. Porque o dinheiro e a mercadoria são mortos. E boa parte das pessoas está mais preocupada com dinheiro e mercadoria do que com pessoas. (A outra parte não está preocupando-se, está vendendo barato seu sangue e suor).

Sengés

Acho que já dava saber de antemão que teríamos muitas situações definidas por contingências. Ou seja, não dá pra prever tudo, mas todos os dias precisamos beber água, comer, dormir etc. Sempre que der, precisamos tomar banho, acessar internet, dormir confortavelmente. Sempre que houver a oportunidade, vamos nadar em alguma cachoeira, conhecer alguém interessante, aprender um pouco mais de bicicletas e sobre um Brasil distante do nosso cotidiano.

Antes de sair em viagem, eu nunca tinha ouvido falar em Sengés, cidade do noroeste do Paraná, vizinha de Itararé, esta última no estado de São Paulo. Não soube da cidade nem em 2010, quando ela passou por uma imensa inundação que matou quatro pessoas e colocou debaixo d’água praticamente todo o seu centro. Nunca ouvi sobre suas cachoeiras e suas paisagens naturais. E talvez não descobriria tudo isso se não fossem a viagem e algumas pessoas que conhecemos lá.

Em Itararé, onde almoçamos, havia fotos das cachoeiras de Sengés num restaurante. Chegamos à cidade com Sol a pino. 38.9 graus era a temperatura que marcava no GPS. Fomos à biblioteca, onde é feita a gestão de cultura (pelo que entendemos, a cidade não conta com secretário de esportes, e essa secretaria é então cuidada pela de cultura). Lá, a moça nos encaminhou para o ginásio da cidade, onde o Edes, que administra o espaço, nos recebeu e nos alojou num lugar ao lado do banheiro e da área pra tomar banho dos vestiários. Tínhamos o cadeado e podíamos deixar nossas coisas, o que tornava possível passear pela cidade. Tínhamos banho e onde dormir. Apesar do cheiro de urina, era mais do que o suficiente.

Já no primeiro dia, conhecemos a cachoeira do navio. As fotos falam por si.

Primeira cachoeira, embaixo da ponte.

À noite, fomos ao trailer do Dalmar, cujo filho, Adams, é um ciclista que gosta muito de mountain biking. Não só recebemos lanches de graça (nesta e nas duas noites seguintes), como fomos convidados a fazer uma trilha pra cahoeira mais famosa da cidade: véu de noiva. No dia seguinte, Affonso estava com a perna um pouco dolorida e resolveu ficar. Eu segui de bicicleta com Adams, Heron e Bruninho, para uma trilha de 27km até o canion mais alto da cidade e mais 5km até a cachoeira (passando por outra, menor, no caminho). Novamente, as fotos falam por si.

Bruxa de blair feelings

Soja em cima do canion

A cachoeira menor

Canion

Véu da Noiva, visto de frente

Tomando ar

Preparando o salto

Começando a viagem

A disponibilidade desses dois caras, Adams e Heron, fez com que ficássemos um total de três noites em Sengés. E tínhamos trilhas e cachoeiras pra ficar pelo menos mais uma semana. O que mais me impressionava era a empolgação de ambos em revelar o que só eles sabiam. Visitamos algumas áreas que nem os pais dos rapazes conheciam. E tudo isso pelo puro prazer de compartilhar conosco o que sabem e participarem um pouco da nossa viagem. Minha gratidão pelo que fizeram é infinita.

Os muleque de Sengés

E foi com o Heron que conversei mais sobre as questões políticas da cidade. Embora seja um pequeno paraíso, a prefeitura de Sengés não sabe explorar  e conservar as paisagens da região. A cidade é atravessada por caminhões de transportadoras, sobretudo por caminhões da Sengés Papel e Celulose, empresa que joga diuturnamente uma fumaça branca no ar da cidade, que dizem ser de enxofre. Ao lado do centro, é muito claro e óbvio que o impacto ambiental é brutal, sobretudo para os moradores. Há relatos de que Sengés tem 10 vezes mais incidência de câncer na cabeça entre seus habitantes. Ouvi também que a empresa é dona a área onde se concentra boa parte da mata ciliar das cachoeiras e rios da região e, embora tenha havido um caso recente de inundação, ela segue derrubando a mata nativa para plantar pinho. É um caso seríssimo de saúde pública e um exemplo preciso do que acontecerá quando nosso tão desrespeitado código florestal for flexibilizado. Contradição tão clara: uma cidade tão preciosa por seu bens ambientais e tão atacada 24h por dia por quem domina o poder econômico (com braços políticos e no judiciário).

Vista de Sengés da estrada.

15 km de Sengés

Se existe algo como a cetesb (ou ministério público mesmo servia) no Paraná, ela certamente faz vista grossa pra essa aberração. E a vista é bem grossa mesmo, porque a fumaça é visível a 15 km de distância, como nós pudemos fotografar.