Arquivo do autor:Fabrício Muriana

Airton

Em Pilar do Sul, cidade que já deixamos pra trás, enquanto o Affonso estava acamado, fui tentar resolver o problema da corrente da bike dele. Coisa bem estranha, uma corrente nova que estava bastante travada e não girava em alguns elos.

Nessa busca aleatória de bicicletarias, fui parar na casa do Airton. O rapaz trabalha num quintal (tem até uma churrasqueira), com um monte de bicicletas encostadas umas nas outras. Lá no fundo, é possível ver um pequeno pomar, e, antes dele, um imenso latão onde ele empilha peças velhas de bicicleta.

Airton trabalhou pelo menos uma hora na corrente do Affonso. Lubrificou com óleo singer (que eu sei que é inapropriado, mas era o que tinha), alargou os elos travados, desmontou os pneus pra mim e eu coloquei as fitas anti-furo. Ele montou tudo de volta. Ao final deixou claro: “não tá 100%, mas eu não tenho uma corrente nova aqui, então é o melhor que eu podia fazer”.

Enquanto estávamos juntos, Airton recebeu cerca de 12 clientes. Quase todos moleques, aos quais respondeu igualmente: “as peças não chegaram ainda, distribuidor vem mais tarde, passa amanhã faz favor”. O interior tem essa coisa de uma outra velocidade.

Até aqui, nada de novo no descritivo. Mas o que é curioso dessa experiência foi ver toda uma oficina de bicicletas adaptada a um mecânico com deficiência física. Se não me falhe a memória do que Airton me contou, ele sofreu um acidente de carro aos 19 anos e perdeu o movimento das pernas. Ficou três anos sem fazer nada e aos poucos começou a achar coisas de que gostava de fazer.

Contou que fazia pipas, papagaios, carrinhos de rolemã pra molecada e foi nesse momento em que ele começou a arrumar algumas bicicletas. Pouco a pouco, a molecada começou a trazer mais bikes e ele sacou que dava pra ganhar alguma grana com aquela ocupação. Há seis anos, ele é mecânico de bikes.

Enquanto falava da sua história, Airton foi especialmente enfático no episódio da compra mínima. Pra passar a ter uma bicicletaria, é necessário ter estoque. A primeira compra para estoque tinha que ser de mais de 360 reais e ele comentou do apuro que passou porque não sabia se faria suficientes trabalhos pra pagar a soma. Ao fim, ele conseguiu pagar a primeira compra e desde então vem mantendo essa oficina que é bastante conhecida em Pilar do Sul.

Eu não queria fazer juízos sobre essa história nem tirar conclusões. Queria só ressaltar uma cronologia: uma pessoa que perde o movimento das pernas por conta de um acidente de carro e passa a arrumar bicicletas, que ele próprio nunca poderá usar.

Primeiros dias

São 00h39, Affonso ronca na cama ao lado. Estamos no hotel Pilar, em Pilar do Sul, sudoeste de São Paulo e esse é o fim do segundo dia de viagem.

Erramos tudo no primeiro dia. Quisemos fazer um caminho por Taboão da Serra e Embu, que foi massa de conhecer e almoçar, mas fomos parar na periferia de Cotia, que deve ser a perifa de relevo mais acidentado do Estado. Surreais as ladeiras de terra que pegamos. Isso nos atrasou bastante e fomos parar em Ibiuna às 22h! Só precisou de um dia pra entendermos que não vamos mais pedalar de noite.

No mais, fomos recebidos por uma família porreta em São Roque: Thaís, e seus filhos Ulisses e Júlia. Eles nos ofereceram toda sorte de comida orgânica e comemos feito bodes que são soltos depois de dormir amarrados. Impressionante como o sabor das coisas é totalmente diferente, não só pela comida orgânica, mas pela necessidade primordial de alimentar-se bem. O cansaço era muito maior do que o previsto, mas tínhamos dois sofás pra descansar e estávamos enfim com o pé na estrada.

No segundo dia, rumamos pra São Miguel Arcanjo, mas quem disse que chegaríamos? No caminho vimos cobras mortas, macacos na beira da pista, muitos rios e as subidas pareciam não acabar nunca. Diversas pessoas perguntando onde íamos, buzinando, dando força. Um ciloviajante é meio que um ET mesmo. Acabamos posando em Pilar do Sul, onde estávamos prontos pra acampar, mas por uma sorte dessas que não acontecem duas vezes, uma pessoa pagou o hotel pra nós. Explico essa história na próxima postagem.

Preciso muito agradecer um monte de gente: ao Mau pela câmera emprestada, ao Vitor e à Sheila e família pelo incrível curso intensivo de primeiros-socorros e findi em Indaiatuba, ao Arthur pelos três encontros que nos ajudaram demais, à Julie, pq ela é linda, ao pessoal da Bicicletaria Nobre que deixou minha bike nos trinks, ao Ourinhos pela formatação do projeto comercial da viagem, ao Palmas e ao Silas pelo help informal na oficina Mão na Roda e a todo mundo que está se envolvendo de uma maneira ou de outra. Disse e repito: energia boa nunca é demais.

No mais, eu queria que essa postagem fosse um jorro. Queria que chovesse uma garoa morna e que todo mundo saísse pra dançar em São Paulo. Queria que todo mundo pudesse compartilhar as imagens, as dores e o suor do que vivemos em tão pouco tempo. Sim, talvez um mundo com mais bicicletas fosse realmente menos ruim.

Ps: um poema pra quem está pensando em viajar.

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Se as leis são trabalhistas, como não trabalhar?

Quando realmente precisamos da nossa legislação trabalhista é que podemos ver mais nitidamente o quanto ela foi criada única e exclusivamente pra proteger pessoas que tenham a intenção de (ou são obrigados a) continuar vendendo sua mão de obra por dinheiro até o final da vida.

Explico-me. Por exemplo, aquele seu amigo meio leso, que se mantém na mediocridade cotidiana, fazendo só o que mandam e acessando diariamente o facebook, ele está muito mais protegido pelas leis do trabalho do que você, que resolveu dar um tempo com essa história da exploração do homem pelo homem. Ele, seu amigo limitado, pode ser mandado embora a qualquer momento e poderá ter acesso ao FGTS (Fundo de Garantia por tempo de serviço, sacou? Quanto mais tempo você passa na inércia, mais você ganha), ele vai receber também o seguro-desemprego (oferecido somente a quem entrou no desemprego por obrigação, não por opção), além de multa rescisória no valor de 40% do FGTS (aquele mesmo: quanto mais tempo na inércia, mais você ganha). Ele também vai receber passes livres de metrô e ônibus por 5 meses, para assim facilitar a sua busca por nova labuta.

É óbvio que essas são conquistas históricas, que servem muito mais aos oprimidos do que às exceções (e eu sei que sou exceção). Mas fica claro e cristalino que a moral que essas leis querem criar é a do trabalhador. E só é trabalhador quem procura alguém por quem possa ser explorado a vida inteira. Querendo isso ou não.

Caso você opte por dar um tempo no rolê, pendurar a chuteira só no intervalo da partida, enfim, viver sem trabalhar por um período curto… bem, neste caso você não tem direito a nada. Pelo contrário: cumpra aviso prévio, senão é capaz de você ser descontado. Porque afinal, já temos 30 dias de descanso remunerados por ano, não é mesmo? 2 dias por semana! 3 dias inteiros quando nasce um filho, ou alguns meses caso você seja mulher. Temos licença médica: nem é preciso trabalhar quando estamos doentes. Vendemos só 44 horas da nossa mão de obra por semana, ainda sobram 124 pra tomar transporte público, comer, acessar o Facebook (à vezes conseguimos até acessar do trabalho!). Que mais nós queremos?

O tom irônico desse texto vem exacerbar o que acontece quando se opta por pedir demissão. A dor e a delícia de assinar um documento que atesta sua deserção e o momento exato em que você olha pra tudo isso e percebe que é um jogo simbólico, em que todos realmente acreditam que se trabalharem receberão dinheiro. E recebendo o dinheiro poderão comprar coisas. E quem sabe consigam não só sobreviver, mas também ter conforto. E talvez além de conforto consigam até uma aposentadoria no fim da vida. E talvez a vida assim realmente faça sentido.

Talvez…

Ps: um comentário: Tira esse talvez do final. Você não acredita nisso nem como possibilidade.

De resto, gosto de tudo. Gosto principalmente da tentativa de concessão com as conquistas históricas. São conquistas de reforma! E essa reforma serve apenas para que o trabalhador SOBREVIVA mais ao sistema que o oprime, seja oprimido, portanto, por mais tempo e melhor. E, em sobrevivendo à opressão, sinta-se agradecido por sobreviver. E, logo, sinta-se privilegiado por ser oprimido cercado de tantos cuidados. Enfim, uma reforma que serve a isso aí que você revelou: jogo simbólico + criação da moral do trabalho. Não qualquer trabalho, mas o trabalho cujo sentido é o dinheiro, ou seja, uma coisa que nem existe.

Te amo, desertor. Talvez você vá com menos dinheiro e foda-se – lembra sempre que ele é uma coisa que nem existe!

Então, é Natal…

O natal é o de sempre, naquele sítio mesmo, os tios e, sobretudo, as tias de sempre. O amigo-secreto, impossível fugir. Um tiquinho de coerção, outro de homofobia velada, mas é verdade, ainda há um restolho de afetos e algumas pessoas com quem se quer de verdade compartilhar.
Explicar aos outros os meus planos de 2012 é uma tarefa difícil, repetitiva, mas gratificante pelas reações absolutamente diversas. “O ano todo?”, “Cara, te admiro”, “Você é louco”, “Vai sair do trabalho”, “Mas e a Julie?”…
Tem poucas coisas que me colocam mais à flor da pele que ver minha mãe chorando. Só de escrever essas palavras, os olhos já ficam marejados. E acho que foi a primeira vez que vi minha mãe chorando por conta de uma decisão que tomei e de que sei que ela discorda. Me ocorre pensar porque ela discorda…
Pra nossa geração (e sei que aqui estou fazendo uma baita generalização, tanto de idade, quanto de classe), parece cada vez mais cotidiano encontrar com pessoas que desertam. A lógica simplificada é “Mas qual é o sentido de tudo isso? Acumular? Consumir? Trabalhar e trabalhar…”. A separação entre o sentido do que se faz e o que se faz propriamente é tal, que fica impossível enxergar razões de acordar todo dia e seguir o que está escrito pra cada um. Não, não é um caminho inexorável. São escolhas em série, nas quais, por inércia ou falha moral, optamos por seguir num sentido que não definimos (opa, tá virando auto-ajuda genérica). Ou seja, quando a gente vê, boa parte do que fazemos na vida não tem qualquer sentido, senão o de manter o padrão de vida que temos e que, por vezes, não escolhemos ter.
Pra geração da minha mãe, ou, mais especificamente, para os meus pais, o sentido da vida é acumular. Sei que estou sendo cruel com essa afirmação e que eles, pessoas, não se resumem a isso. Mas há razões materiais para que eu conclua isso. Tudo que eles conquistaram foi fruto da venda de suas forças de trabalho. Eles tinham a minha idade num Brasil que tinha sido atropelado por um golpe militar, onde a moral cristã, da família, do trabalho, se instalou de maneira que nenhum comunista pensaria que seria possível antes do golpe.
A minha geração está aprendendo o que é não ter essa mesma moral nos arrastando. Agora a coisa é diferente. O mundo está aí pra ser consumido. Nas palavras da Maria Rita Kehl, é uma festa permanentemente nos convidando a participar. Mas curiosamente nunca estamos satisfeitos.
Aqui é possível ver a diferença entre as reações. Entre os meus próximos, não houve ninguém (reiterando: NINGUÉM) que tenha me chamado de louco. Porque desertar está logo ao lado. É sempre uma opção que não tomamos. Para a minha mãe, desertar é parar de acumular, portanto é morrer um pouco. Por isso o choro.
Não foi exatamente o natal mais feliz, mas foi um Natal em que guardei algumas coisas que ruminarei por muito tempo. Continua sendo muito chato ver alguém chorar por uma decisão minha. E continua sendo uma decisão que faz cada vez mais sentido.

Ps1: Embora eu não concorde com a conclusão do rapaz, vale ler também o texto do Guilherme Cavallari: http://www.extremos.com.br/Blog/Guilherme-Cavallari/111212_promessas_e_desejos_para_o_ano_novo/

Ps2: A foto da Simone não corresponde à realidade. Esse deve ter sido o único Natal dos últimos 10 anos em que não ouvi aquela música infernal. Em compensação, Michel Teló…

Só pra não esquecer (cobrem!)

Ainda faltam 2 meses pra viagem e já podemos falar sobre:

Itens pra bicicleta – Decisões difíceis (ou aquele papo chato de ciclista).

Comprando da gringa – é, vira e mexe você se fode.

Vistos – Ou como fazer você parecer um turista normal.

Vacinas – Porque você só se preocupava com as do seu cachorro.

Pessoas que ficam – elas dizem, mas você não é maluco.

Couchsurfing – sério, quem fez essa porra andava de bike.

Carteirinha de Hostels – Você nunca sabe quando vai precisar.

Itens de acampamento – Também somos begginers.

Grana – Nós também não somos herdeiros.

Claro que tem muito mais, mas é isso aí por enquanto: PARTIU!

Ushuaialaska – onde tudo começa

Este é o primeiro post de uma longa viagem que, por enquanto ainda está em planos, mas que em janeiro deve se tornar realidade.

Ushuaialaska, a amálgama de palavras que compõe provisoriamente o nome do projeto, é a metáfora das Américas unidas, como um só continente, espécie de estrada que pretendemos percorrer no próximo ano.

Parece que 2012 é o ano do fim do mundo, então não tem ano melhor pra chegar até onde o mundo termina literalmente: Ushuaia, cidade mais ao Sul da Argentina. Depois vamos subir pelas América até o Alaska… ou até onde der né, pq sabe cumé? No fim do ano vai estar um frio da porra lá na terra dos yankees e dos alces.

A ideia inicial é fazer deste espaço uma espécie de diário de viagem, junto com as informações mais essenciais a quem queira fazer uma viagem parecida. Se é pra ser útil a outros viajantes, o mais importante é contar o que deu errado, situações em que a gente passa perrengue e mais aprende. Então não precisa ficar com dó. Se contarmos aqui algo muito escabroso, lembre que sobrevivemos pra contar 😉

Vou eu, Fabrício Muriana, formado em comunicação social, graduando em Filosofia (tranquei, né, fazer o quê?), semi-alfabetizado, ciclista urbano, ator profissional a contra-gosto, uma das pessoas que ajudou a criar o projeto das Coletivas, que pirou em algumas ideias do Ônibus Hacker, que participa há alguns anos da Metareciclagem e da Bicicletada de São Paulo. Enfim, que acha mór legal o atual momento político da América Latina.

Vai também o Affonso Prado (ou como eu o vejo), artista plástico, baterista, pandeirista, desenhista, ex-aluno do exército brasileiro, carioca de nascença (só de nascença), roda por São Paulo com uma Peugeut 10 de mais de 20 anos. Amigo que conheci no colegial e que topou o ano sabático dando rolê-nas-américa. Também está no projeto das Coletivas desde o começo e cedeu um pedaço da casa para oficina!