Foz do Iguaçú-PR e Ciudad Del Leste

Fazem já quase duas semanas que não publicamos nada no blog, ou por falta de internet ou por desorganização nossa. Mas confesso que pra mim, registrar ou contar o que estamos passando tem se imposto como uma necessidade tão urgente quanto comer, ir no banheiro ou jogar video-game (que saudades de Zelda! Sério…). Agora já estamos em Asunción no Paraguai, quase partindo em direção a Encarnación. Vou tentar lembrar o que aconteceu desde Cascavel:

Momentos antes de partirmos de Cascavel rumo a Foz do Iguaçú, um caminho de 140 km que pretendíamos percorrer em um só dia, tentávamos descobrir no google maps alguma informação sobre o relevo deste trecho, sem sucesso. Se houvessem serras ou subidas como houveram em todos os dias anteriores à nossa chegada em Cascavel, essa distância iria nos esgotar, mas não queríamos ter que dividir este trecho em dois dias de viagem. Quem concluiu que o caminho seria plano foi o Túlio (nosso anfitrião na cidade): “Todas as cidades a partir de Cascavel até Foz do Iguaçú recebem indenização pelo alagamento devido à construção da barragem na hidroelétrica de Itaipú”.

 

Affonso, Túlio e Fabrício na nossa despedida de Cascavel-PR

No caminho, mais um tanto de toda aquela paisagem que cansamos de ver ao longo de São Paulo inteiro e muito do Paraná: quilômetros de plantações de soja, eucalipto, pinho, e em menor escala milho. Eu ficava imaginando aquelas crianças do interior que quando vêem o mar pela primeira vez tem uma sensação de imensidão, de infinito, e como eu tinha quase a mesma sensação ao olhar os campos de soja ou plantações de eucalipto, a perder de vista, mas sem o deslumbre da criança, e sim com a angústia de quem vê as evidências da ganância pelo lucro como uma forma de miséria. Não era muito diferente, pra mim, do que estar diante de um deserto (com todo respeito aos desertos, que tô cheio de vontade de conhecer).

Campo de soja entre Cascavel e Foz do Iguaçú

A foto ficou ruim, mas na propaganda uma mão segura uma semente de soja, que é igual a muita grana.

Durante a pedalada pelo estado do Paraná, os inúmeros rios (alguns muito, muito bonitos), as araucárias, um grande trecho onde a cada quilômetro havia uma olaria emanando cheiro de tijolo queimado pelas chaminés, e também as serras, tudo isso dava um respiro e outro ritmo pra o cenário repetitivo que se revezava entre soja, eucalipto e pinho. Quanto mais perto chegávamos de Foz, mais esse cenário era invadido por cartazes (outdoors) realmente enooormes anunciando lojas ou produtos a venda no Paraguai.

Anúncio da loja paraguaia Monalisa, constante em todo o estado do Paraná.

…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..

Um episódio solto, que aconteceu poucas horas antes de chegarmos em Foz: fazia muito calor, e o Fatício me esperava na sombra de uma árvore a poucos metros de um posto de gasolina onde reporíamos nossa água. Uns 15 metros antes da sombra, sentada na estrada no exato ponto onde passam os pneus direitos dos carros e ônibus sobre o asfalto estava sentada uma pomba, parada e quieta, parecia que chocava um nada. Eu passei a pomba, cheguei na sombra e comentei com o Fatício: “Olha a suicida lá”. Nem 10 segundos depois veio o caminhão e só ouvi um “ploc” que queria poder apagar da cabeça. O Fatício viu e comentou: “É, pegou mesmo”. Nem virei o rosto e seguimos pro posto. O Fatício voltou a falar: “Cara, que estranho!”. Ficamos com isso na cabeça até que um frentista, muito sorridente e animado, chegou perguntando: “Posso saber de que ponto do planeta vocês são?”

…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..

Nessa viagem muita coisa ganha aquele frescor dos cheiros na infância, como o cheiro de pão quentinho que vem te acordar na cama de manhã. Mesmo o cheiro de chiqueiro, quando passava um caminhão com dois andares lotados de porcos berrando loucamente, ou de um animal morto na beira da estrada, tudo isso estranhamente tem me devolvido essa sensação de frescor. E eu, que já não tenho mais avós vivos, tive de volta a sensação de um acolhimento de vó nos 5 dias que passamos em Foz, na casa da Cida Muriana, parente distante e até há pouco tempo desconhecida do Fabrício. Mesmo comendo mais de 2 quilos por dia durante as pedaladas (que eu nunca soube pra onde vão), na Cida me senti naquele típico regime de engorda em casa de vó (uma avó jovem, diga-se de passagem).

Cida Muriana, logo após nossa chegada. Reparem e lembrem desse tipo de cadeira, falarei dela no post sobre o Paraguai.

E o Fatício, recém apresentado à Cida, e ainda suado pela viagem.

Logo que chegamos, muito cansados mas rindo à toa, a Cida já nos trouxe copo d´água geladinha, depois achocolatado, depois fez a janta, depois sorvete, e foi assim todo dia, mesmo com o Fatício, a Juli e eu insistindo em dividir as tarefas e os gastos. E toda essa comida e amor davam e sobravam pra nós quatro, mais a Jú e o João (filha da Cida e seu marido), o Xande e seus três filhos (Luiza, Xandinho e Angelo), o Lucas, o Pedro, e quem mais morasse ou frequentasse a casa da Cida.

No primeiro dia após nossa chegada (e da Juli, que nos acompanhou de Cascavel a Foz de ônibus) fomos conhecer a usina de Itaipu, ou mais propriamente, Itaipu Binacional (é tanto brasileira quanto paraguaia, ainda que menos de 10% da produção de energia seja destinada ao Paraguai). É, junto com as Cataratas do Iguaçú e Ciudad del Leste, um dos três lugares absolutamente assombrosos da região. A Juli escreveu um texto que publicamos aqui chamado “dois barbudos no templo do capitalismo” que fala muito bem sobre Itaipú, e eu queria mesmo que o Fatício também falasse algo, que ele é muito observador das questões políticas, econômicas, e de todo o custo humano envolvido na construção e manutenção da usina. Fala Fatício, faz favor!!

No segundo dia fomos conhecer o lado argentino das Cataratas do Iguazú. Eu já havia visitado duas vezes as Cataratas, até então apenas pelo lado brasileiro. Na primeira vez em que fui, um dia de muito sol e com as quedas de água especialmente volumosas, tive uma das experiências sensoriais mais intensas que já viví: chegando na ponta da passarela de metal que vai em direção à queda da Garganta do Diabo, era uma imensidão de água caindo, e aquele volume todo fazia o rio que corria sob a passarela formar inúmeros redemoinhos na superfície da água, e também redemoinhos de vapor ou gotas muito finas que se precipitavam pra fora da água em turbilhões; eu via arcos-íris em todo canto onde olhava, até um bambolê de arco-íris ao redor de mim, aquilo tudo parecia um enorme e truculento berçário de arco-íris; era água que te molhava de cima pra baixo, de baixo pra cima, de quatro, de lado, por trás…e quando olhei pra cima vi uma enorme esfera branca flutuando a poucos metros do início das quedas, toda de vapor de água condensada e rodando lentamente, parecia um planeta em branco. Tudo isso junto era um exagero de beleza concentrada, e nenhuma foto nem vídeo chegaria perto de expressar o que vi ou que pode acontecer por lá.

O lado argentino é sem dúvida muito mais bem estruturado, amplo e abrangente do que o brasileiro. É um enorme parque, no mínimo 10 vezes maior em espaço, variedade de opções de passeio e visões das Cataratas do que o lado brasileiro. E não posso deixar de falar do enorme fluxo turístico nos dois parques, um frenesi constante que, se bobear, também te contagia. Já falei muito das quedas, vejam algumas fotos e não deixem de conhecer quando puderem:

Juli esperando pra pegar o barco que leva até a ilha entre algumas quedas

 

Xande, Fatício e Juli no barco

 

Cida Muriana sobre a queda da Garganta do Diabo

A Garganta do Diabo vista de cima

Acordamos umas 8:00 no terceiro dia pra atravessarmos a Ponte da Amizade que liga Foz do Iguaçú à segunda maior cidade paraguaia, Ciudad del Leste. Como pretendíamos fazer algumas compras por lá, tivemos que esperar as casas de câmbio abrirem pra trocarmos reais por dólares.

Fatício e Juli observam o Rio Paraná através da cerca aberta na Ponte da Amizade

Tampouco seria minha primeira vez em Ciudad del Leste, mas não canso de ficar assombrado com a agressividade do comércio patente em todo canto da cidade; é o capitalismo na sua forma mais crua, sem terno nem etiqueta. Eu já estava mais ou menos avisado sobre o clima de velho-oeste no Paraguai, mas não deixei de me assustar com os seguranças particulares armados com escopetas ou metralhadoras nas portas de lojas e até de restaurantes. Nem com os vendedores de rua, homens, mulheres, velhos ou crianças, te assediando em massa com as mesmas estratégias de corrupção: “Camisinhas musicales, 5 reais…3 reais…1 real…Cocaína, haxixe?…”. Dentro de muitas lojas, um canal de televisão local exibe permanentemente e ao vivo um ângulo fixo da ponte da amizade, pra que os comerciantes avaliem como está o “clima” nas aduanas. A atmosfera real de malandragem, de mutreta, nos fazia tentar conter a histeria das compras pela extrema cautela de quem não quer ser sacaneado ou assaltado nem na rua nem nas lojas pelos vendedores, mas mesmo assim quase não pudemos evitar mais de uma situação que poderia ter nos dado muito prejuízo.

Juli compra meias

 

 

Interior de loja em Ciudad del Leste

Conhecer certas cidades através de moradores com conhecimentos específicos pode te propiciar uma profundidade de contato que você nunca poderia ter sozinho. Passei por isso na segunda vez em que visitei Brasília, quando tive o privilégio de conhecer outros aspectos da cidade através da mãe de uma amiga de lá, que trabalhava no Congresso e fez 3 faculdades: arquitetura, ciências políticas e gestão pública. Mesmo sem ter me convencido a gostar de Brasília, eu não poderia ter tido anfitriã melhor pra me apresentar os meandros daquela cidade. O mesmo aconteceu com o João, marido da Jú (filha da Cida), que mora em Foz e trabalha em Ciudad del Leste numa importadora. Foi ele quem nos deu os contatos de lojas nas quais poderíamos confiar, e a quantidade de dicas, macetes, informações que pegamos dele é incalculável. Invejo o Fatício por ter podido ir uma outra vez a Ciudad del Leste de moto na garupa do João: acho que andar de moto no trânsito realmente caótico e sem leis de lá, cruzando as fronteiras por corredores estreitíssimos e super concorridos, e mesmo com todo o risco envolvido, é uma das experiências mais intensas e específicas de lá. E fiquei pasmo com o João quando, ligando pela primeira vez o iPod que comprei e ao ver que estava todo escrito em chinês, ele soube trocar, às cegas e depois de uns 15 minutos mexendo no aparelho, o idioma padrão pra português.

Juli, Fatício, Juliana, Cida e Affonso na nossa partida de Foz do Iguaçú

Após os 5 dias de muito turismo, compras, família e descanso em Foz, novamente nos preparamos pra despedida, da Cida e sua família, e também mais um “até breve” pra Juli, que após uma semana nos acompanhando voltava pra São Paulo.

 

Ainda sobre São Miguel Arcanjo, Zizo e Resistência.

Quando estive em São Miguel Arcanjo, na casa da Nê Balboni, tentei publicar esse texto numa revista de São Paulo. Acabou não rolando, então publico aqui, com um pouco mais de riqueza de detalhes que o texto original. Fotos de arquivo, minha e da Jurema.

Matias e Abaeté

O ano é 1969. Matias, 24 anos, acordou para mais um dia de muito trabalho. As semanas anteriores haviam sido pesadas, verificando cada detalhe da ação e definindo, tão cifradamente quanto possível, o grupo mínimo necessário. O banco ficava na avenida Paulista, seu grupo não estava muito longe dali, e a polícia estava cada vez mais atenta a esse tipo crime. Na sua cabeça, a certeza de que aquela seria uma entre poucas ações que dariam a base necessária para a retaguarda do comando. Matias lembrava de São Miguel Arcanjo, onde nascera, e onde sua família guardava uma boa quantidade de terras. Lembrava do sertão de sua cidade, onde cogitava treinar um grupo que fizesse seu papel histórico naquele canto do estado. Na mão, um revólver que mais estalava do que atirava. Na ação, nem todos os apelidos eram conhecidos, nem ele próprio os queria saber. Junto dele, estava Manoel – não o apelido, mas o nome – que será importante testemunha da ação.

O ano é 2012. Abaeté, 27 anos, acordou tarde, de uma noite com algum vinho e toda sorte de acepipes naturais: cevada, feijão, pepino, bolo de mandioca e ovos. No café, frutas, um violão, pão caseiro, sucos. Muitas pessoas no sítio UOAEI. Nomes de índios entre todos os amigos: Ungará, Jacira, Jurema, Itaberaba… Preparam-se pra uma expedição ao Parque do Zizo, reserva particular de Mata Atlântica da família de Abaeté, situada em São Miguel Arcanjo, parte da mata remanescente onde também se encontra no Parque Estadual Carlos Botelho. Uma noite ao lado da segunda (ou seria a terceira?) maior cachoeira do estado de São Paulo. 5 pessoas num fusca até a entrada, mais 5 kilômetros de caminhada mata a dentro. Chega uma bicicleta e, em cima dela, Manariru.

Na saída, Matias não está tão tenso quanto esperava. Sua primeira ação poderia ser a única, dependendo dos desígnios da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele sabia que por nada deixaria de fazer o curso de arquitetura e que tudo que havia aprendido na engenharia daquela universidade murada seria útil de alguma forma, até que pudesse seguir o que sentia ser seu talento verdadeiro. Até lá, as armas foram sua escolha para combater um inimigo real, concreto, que parecia estar em todo lugar, no olhar dos civis que os apoiavam, nas batidas em que se cobrava a carteira de trabalho, na ostensiva repressão a tudo que fosse distinto das rígidas, e tantas vezes sem sentido, determinações militares. O fusca seguia na direção do banco escolhido, mas o barulho de sirene faria todos saírem do carro para se proteger. Do carro da polícia, grita Sérgio Fleury, que já os patrulhava há mais de três dias e os seguia desde que Matias entrara no carro.

Abaeté pergunta se Manariru tem experiência com acampamentos, se tem disposição física para passar uma noite desconfortável. Explica que a experiência será de muito silêncio, introspeção. O dono da bicicleta não titubeia em dizer que está preparado, que quer se juntar ao grupo e que talvez faça um relato para a revista da capital sobre a experiência. Abaeté então lhe empresta um saco de dormir e uma blusa. A bicicleta vai na frente, o fusca parte depois de 15 minutos. São 12 kilômetros até a entrada do Parque do Zizo, que está fechada (a chave ficou com o tio Chico, que não estava na cidade). Todos, do fusca e da bicicleta, se reencontram e juntos pulam o portão do parque, confiantes na experiência de Abaeté e na certeza de que aquela é uma reserva particular e que um dos herdeiros liderava o grupo.

Ouvem-se muitos disparos. Um deles, de fuzil, acerta Matias, mas ninguém pôde saber onde, porque o caixão de zinco com seu corpo chega lacrado. Agonizante, Matias é resgatado e jogado no carro da polícia como indigente. Levado até o DOPS, já não pensava mais na infância, nem na arquitetura, muito menos em São Miguel Arcanjo. Sabia que havia a quem proteger, que não lhe dariam tratamento e, àquela altura, só queria algum fiapo de esperança em que acreditar para sobreviver. Mas se a perda de sua vida fosse necessária para poupar outras, estava disposto a entregá-la, mesmo que achasse essa a situação mais injusta que poderia conceber. No DOPS, a primeira hora de sangramento foi infinita. Colocado em uma posição em que podia ver o próprio sangue, pediam-lhe nomes do grupo e ele não os sabia. Perguntavam de pessoas que ele não via há anos e apanhava ao negar cada pergunta.

Nos primeiros passos, o grupo descobre que esqueceu a comida. Somam-se os víveres e temos um caixo de uvas, um saco de castanhas do pará, um pão grande e três cenouras para 6 pessoas e três refeições. Tudo é racionado e o que era silêncio de instropeção, vai se tornando silêncio de quem guarda energia. A natureza completa o banquete com bananas verdes. Todas as relações são ritualizadas. Para começar a caminhada, dá-se as mãos em roda. Para acender a fogueira, dá-se as
mão em roda. Para ir para a cachoeira, todos devem dizer sim. Frente ao imenso jorro de água, distribuído em diversas quedas, o grupo não se contém nos gritos de alegria. Tiram as roupas, nadam, dormem ao Sol, fotografam-se, banham-se e dão-se as mãos, em roda.

Duas horas depois, Matias entra numa espécie de nirvana. Seu pensamento persiste, embora seu corpo já não responda a mais nada. Rubens Tucunduva, delegado que o interrogava, já tinha desistido de jogar-lhe água fria e pede ao cabo que desse um banho no corpo e que o levasse ao Hospital das Clínicas. Matias ouve toda a conversa e pensa que chegou o momento de sobreviver, de talvez ir para Cuba, mas antes passar em São Miguel, abraçar a mãe e os irmãos, explicar por que não entrou em contato nos últimos dois anos, dizer que era arquitetura (já sabia!), que tinha tido amores e que teria outros, que não gostava do cheiro de pólvora, que não vendessem as terras, que queria ouvir os muriquis mais uma vez, que o Lamarca era mesmo aquilo que imaginavam, que esperassem um pouco mais e estivessem prontos porque o mundo não podia ficar daquele jeito pra sempre. Não precisava mais da arma que não atirava direito. Nunca quis matar. Nunca quis morrer.

À noite, fogueira alta, e um grande ritual de benção de objetos pela natureza. Cortam-se folhas de bananeiras, arma-se uma rede e todos encontram seu lugar. Abaeté sabe que aquilo é um oásis, mas que não é mantido com pouco esforço. Tem a certeza de que a própria ocupação da área já era uma posição política. No dia seguinte, mais um banho em nova cachoeira, mais mãos dadas em roda, fotos e a última refeição: 3 uvas, 4 castanhas do pará, 5 pedaços pequenos de cenoura, algumas bananas verdes cozidas e 50 gramas de pão por pessoa. Todos sabem que dormiram mal, que comeram pouco, mas ninguém reclama.

Os legistas Antônio e Irany recebem o corpo de Matias, que fora encaminhado ao Hospital das Clínicas já desfalecido e que está sob a responsabilidade do IML. Causa mortis: tiro de fuzil. Havia, no entanto, outras escoliações, que Antônio advertiu Irany para que não descrevesse, porque não teriam causado a morte. Na ficha, mais informações sobre sua vida do que Matias jamais teria pensado. Já tinham seu nome, sua cidade natal, os nomes dos integrantes de sua família e agora adicionavam o dia em que expirou. Lacrado o caixão de zinco, sua mãe o recebe em São Miguel Arcanjo. O soldado se comisera da mãe que chora, mas não deixa de cumprir a ordem de avisar que aquele era um ladrão, que fora morto como um meliante porque mereceu, que assaltava bancos e que representava um perigo. Diz que não acredita que a mãe o havia educado assim, mas que não pode fazer nada se o indivíduo é ladrão.

Na volta, os 5 kilômetros finais parecem ter dobrado de tamanho. Os roncos dos estômagos faziam um coro mais alto do que os 600 muriquis remanescentes no parque. Abaeté chega ao portão trancado que haviam pulado. Antes de sair, pede que Manariru encha o cantil de alumínio que carregava. O companheiro de guerra o completa, mas não consegue fechar a tampa. Abaeté pergunta se Manariru sabe quem foi Lamarca. Abaeté explica que aquele fora o cantil de Lamarca, quando ele ainda fazia parte do Exército Brasileiro. Lamarca passou naquele mesmo parque fazendo uma das últimas patrulhas com seu batalhão, antes de desertar com a Kombi lotada de fuzis armados leves. Deixara o cantil ao avô de Abaeté, que era guarda florestal. Do avô ao tio, que partiu aos Estados Unidos, e deste para Abaeté, que o mantinha até hoje.

Somente em 1996, Matias será reconhecido como um dos assassinados pela ditadura militar brasileira. Seu nome, Luiz Fogaça Balboni, passa a figurar na página 70 do Livro dos Mortos e Desaparecidos políticos a partir de 1964. Em 1997, ou 28 anos depois da morte, Manoel Cyrillo, que estava na ação, encontra a família do companheiro de luta e explica a que horas tudo aconteceu. Os elos vão se fechando e fica evidente que o rapaz fora torturado antes de morrer. Em fevereiro de 1998, a família recebe 120 mil reais, segundo relatos no site do Parque do Zizo (ou seriam 250 mil dólares, nas palavras de Abaeté), como indenização pela morte do filho. Em 1999, um vereador de Itapetininga propõe que uma rua ganhe o nome de Luiz Fogaça Balboni. No mesmo ano, a família dele decide utilizar o valor da indenização numa reserva conservada de Mata Atlântica em São Miguel Arcanjo – é criado o Parque do Zizo (apelido de Luiz Fogaça Balboni). Em 2011, é criado o sítio UOAEI, mantido por Rafael Vasconcelos Balboni, o Abaeté, onde são desenvolvidos projetos de agricultura sustentável e defesa do Parque do Zizo.

Abaeté diz que é de paz, mas já teve que tirar peixeira pra proteger o parque contra palmiteiros. Relata que a questão fundiária e a grilagem continuam sendo constantes na região, mesmo com a criação do Parque do Zizo e com o Parque Estadual Carlos Botelho. Revolta-se contra a ignorância de quem não entende que uma árvore de palmito demora 12 anos para estar no ponto de colheita. Não se conforma que as pessoas não preocupem que os macacos Muriqui, os maiores da América Latina, estejam em extinção e que aquela área, onde residem, não seja devidamente conservada pelo Estado. Um jovem de 27 anos escolhe o caminho da aproximação do parque e isolamento da cidade, onde toca seus projetos e vivências ligados à natureza. Ao fim de seu desabafo e atento ao cantil que carregava na mochila, emenda: a luta continua, companheiro.

Dois barbudos-bronzeados no templo do capitalismo

A Juliene, minha namorada, colou em Cascavel e Foz do Iguaçu pra encontrar com a gente no carnaval. Desse encontro, saiu um breve relato dela sobre esse lugar absurdo que é a tripla fronteira. Publico o relato abaixo. Depois adiciono fotos.

Viajar de bicicleta bronzeia. Quando encontrei aquele moço galego com quem compartilhei 90% dos meus dias nos últimos anos, quase não reconheci. Barba + sujeira de estrada + muito sol na pele todo santo dia fizeram um rosto novo. Bonito. Marca de uma vida diversa.

De São Paulo a Cascavel foram cerca de 12 horas de viagem de Carnaval em um busão promocional beeeem ruim – quase o mesmo número em horas que Fabrício e Affonso usaram em dias no mesmo percurso. A conclusão é que os motores “pulam” muitas possibilidades nessa vida. E que eles mentem. A velocidade deles mente o tempo da vida.

De Cascavel, partindo da deliciosa casa do Túlio (que nos recebeu pelo Couchsurfing – oba! Obrigada!), seguimos para Foz do Iguaçu – os maluco de bike e eu de busão. Eles chegaram quase uma hora antes de mim em Foz. Eu saí de Cascavel quase 8 horas depois deles.

O quadradinho da janela do ônibus não me impediu de sentir a aproximação do templo do consumo sem impostos (ou quase sem impostos). Ai, o Paraguai. Para o quê?

Desde muitos quilômetros antes da fronteira, outdoors gigantes nos contam tudo o que podemos encontrar no paraíso. Tudo escrito no imperativo. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. A percepção veio meio lenta, distraída – eu estava escrevendo versos sobre solidão. De repente, percebi a cabeça acelerar e notei que eu estava repetindo mentalmente uma série de frases sobre as quais não tinha refletido. Compre, conheça, compre, veja, compre, vá, compre, encontre, compre. O melhor “não sei o quê”, o mais novo “não sei o que lá”, o maior “não sei mais o quê”, o mais visitado “não sei mais o que lá”.

Em vez de correr pra Monaliza (a loja campeã em quantidade de anúncios na estrada), corremos para a família ainda desconhecida do Fabrício. Os Muriana são muitos e bons em Foz e não existe sensação mais aconchegante na vida do que casa de vó. E estivemos lindos dias na casa da Muriana, avó de Luiza, Xandinho e Angelo.

 

Nos primeiros dias, trocamos a abundância de produtos pela abundância de água e os meninos trocaram as bicicletas pelo carro na carona da Ju em um dos dias e do Xande no outro dia.

Primeira parada: Usina Hidrelétrica Itaipú Binacional. Além de todo o impacto ambiental que já conhecíamos de ouvir falar e da complexidade das negociações entre Brasil e Paraguai (dívidas de guerra, questões territoriais, etc), uma novidade triste: um pouco acima da Usina, ainda nas águas do Rio Paraná, existia, antes da construção da barragem, Sete Quedas, um conjunto de quedas d’água provavelmente maior em volume do que as mundialmente conhecidas Cataratas do Iguaçu. A belezura toda foi afundada 1982, como resultado do trabalho de mais de 40 mil pessoas que construíram Itaipu.

Segunda parada: Cataratas do Iguaçú, passeio pela estrutura do lado argentino das Cataratas – ponto de vista mais privilegiado que o nosso. É praticamente impossível explicar o que é uma queda d’água daquele tamanho. Os olhos ficam cheios e ainda sobra água pra ver. Nas junções entre quedas, às vezes, fica impossível estabelecer fronteiras, tudo se confunde, a visão fica bagunçada, a água puxa o olhar pra baixo até o rio. É coisa demais pra olho humano. Uma das coisas mais bonitas que já vi na vida.

Nada me tirava da cabeça a imagem puramente idealizada do que deveriam ser as Sete Quedas, que deixaram de existir por decisão humana e em nome do “desenvolvimento”. Fabrício fez uma observação que ainda me assusta: de certo modo, parece que a barragem de Itaipú mimetiza as Cataratas, copia (feiamente, convenhamos) a natureza, as barreiras naturais. Quase daria pra confundir, se uma coisa não fosse relativa a vidas e outra relativa a mortes (145 de trabalhadores, segundo um dos operários que fez parte da construção e nos acompanhou na visita. Sem contar peixes, pássaros, onças, …).

E falando em coisas relativas à morte… vistas as cataratas do rio Iguaçu (e a histeria turística de fotos e poses em seu entorno), o resto… o resto é comércio. O resto é dinheiro. O resto é trabalho absolutamente indigno, mal pago, mal valorizado, mal aplicado, mal planejado de Ciudad del Este. O resto é uma vontade contraditória de que o rio invadisse justamente aquele lugar fronteiriço em que o sistema de valores que vivemos ganha vida em cada cantinho e se mostra, pelo menos pra mim, enorme e poderoso. O resto são pessoas virando mercadoria, trabalho virando mercadoria, vida virando mercadoria. Cotação de dólar, cheiro de desconfiança, seguranças hiper-armados contra-quem? O resto é a pressão para que você tente ter tudo aquilo de que você não precisa. O resto é, portanto, relativo à morte. Porque o dinheiro e a mercadoria são mortos. E boa parte das pessoas está mais preocupada com dinheiro e mercadoria do que com pessoas. (A outra parte não está preocupando-se, está vendendo barato seu sangue e suor).

Segunda semana no Paraná (12 a 19/2/2012)

No último domingo completamos 3 semanas de viagem na casa de mais um anfitrião do couchsurfing, o Túlio, em Cascavel-PR. Hoje, já em Foz do Iguaçú, estamos muito próximos tanto de sair do estado do Paraná quanto de cruzar nossa primeira fronteira pra outro país. Dá pra dizer que a primeira etapa de nossa viagem foi completada.

Eu queria relembrar aqui a alegria que senti ao cruzar a divisa de estados entre São Paulo e Paraná. Ainda em São Paulo, comentando com amigos sobre os planos da viagem, eu costumava dizer que, mesmo com a imensa ambição de nossa viagem (descer pro Ushuaia e subir ao Alaska), se eu conseguisse chegar no Paraná já seria um grande feito. Então o limite mínimo do meu fracasso já foi superado e estamos cada vez mais adaptados às condições da viagem. Daqui pra frente os desafios tendem a ser maiores: maior necessidade de adaptação à novas línguas, hábitos e costumes locais, comidas, condições climáticas. As bicicletas também já estão começando a apresentar desgastes, pelo uso intenso e o peso, e a mudança de tipos de estrada (do asfalto pra estradas de rípio, terra ou outros) pode aumentar esse desgaste. O vento, que até agora pouco ou nada interferiu no ritmo da pedalada, daqui pra frente tende a ser um fator determinante caso esteja contra ou a favor de nossa direção. E todas as subidas que enfrentamos (e foram muitas e sempre) devem ser mesmo só a raspa da sujeira debaixo da unha do dedinho do pé de uma miniatura em argila, mal-feita, feia e por R$1,99, da cordilheira dos Andes.

DIÁRIO DA SEMANA

Saindo de Ponta Grossa na manhã de segunda-feira passadas, depois da despedida pra Eva e o Cláudio (que, curiosamente, se despediram com aquela saudação típica japonesa, mas discretamente), seguimos em direção a Prudentópolis, uma pequena cidade com 70% da população descendente de ucranianos ou poloneses. Logo na entrada da cidade, um portal de bem-vindos com algumas características típicas de igrejas ortodoxas e  construções do leste europeu. No pátio de uma escola, durante o recreio, só dava criancinha de cabelo branco-quase-loiro correndo, e as professoras gritando: “Damasceno, larga o cabelo da Lyaksandra! Joãozinho e  Ivaniev, brincadeira de mão não pode!”. Era curioso parar numa loja ou bar e ver aqueles homens chucros, aquele típico capiau interiorano do Brasil passando a tarde com um copo de cerveja na mão e ruminando umas consoantes na boca, mas na figura de um eslavo.

Chegada a Prudentópolis-PR

Mais uma vez fomos buscar a secretaria de esportes local, e mais uma vez pudemos dormir num banheiro do ginásio de esportes.  Guardamos nossas coisas e fomos tomar sorvete, conhecer duas igrejas locais (a ucraniana e a polonesa, fotos abaixo), e comprar uma espécie de linguiça ucraniana, a cracóvia, que podia ser de porco ou frango. Compramos a de porco, mais um queijinho ucraniano bem macio, e um pão feito no dia, pra nosso jantar e café da manhã do dia seguinte. À noite no ginásio, conversei um bom tempo com o guardião, um homem com um jeito muito singelo de falar das próprias fraquezas ou dores (a propósito, não foi o primeiro paranaense em quem reparei esse jeito). Me contou devagar, baixo, um pouco lamentoso mas tranquilo: “Olha, piá, nunca fui bom de bola. Eu gosto de bola, sabe, mas meu pé não encaixa, daí”. Acho que sou incapaz de expressar como ele falava, mas tentei aqui só pra registrar. Antes de dormir, ele nos alertou: “Se começar a ouvir uns barulho na noite repara não, é a coruja que entra no ginásio pra caçar filhote de pombo e bate com a asa no teto”.

No banheiro do ginásio de esportes em Prudentópolis-PR

A igreja ucraniana de Prudentópolis

O interior da igreja, com as imagens de santos pintadas sobre um fundo dourado, típicos na iconografia cristã ortodoxa

Tocando o sino

A igreja polonesa

Fomos dormir à noite sem termos decidido o destino do próximo dia. Nem olhamos o mapa. De manhã, pouco antes da partida, combinamos: “vamo indo. Uma hora a gente pára.”. É gostoso sair meio sem rumo por aí, mas a falta de planejamento também traz alguns problemas. Depois de termos pedalado mais de 100 km, encarado uma serra muito extensa com subidas infinitas, já com as pernas cansadas, uma ameaça constante de chuva e sem saber direito quanto mais teríamos que pedalar até achar uma fazenda, povoado, distrito ou cidade, paramos num posto de atendimento da estrada pra descansar, tomar chafé e pedir orientações. A próxima cidade chamava-se Candói, e o primeiro bairro dela, Lagoa Seca, ficava a uns 13 km de onde paramos.

Araucária pouco antes de começarmos a subir uma das serras paranaenses

Parada pra descanso no mirante da serra

O que uma tubaína faz com um jovem...

Em direção à chuva

Parada no posto de atendimento da estrada

Assim que vimos um posto de gasolina com restaurante aberto, e do outro lado da estrada algumas casas e um colégio fechado, paramos. Já eram quase 18:00, e não tínhamos idéia onde buscar hospedagem. Parando pra comprar umas bananas (boas pra recuperação muscular) numa espécie de padaria/mercadinho, o dono nos sugerir dormir numa construção ao lado de sua venda, um galpão em construção. Conversamos com o pedreiro responsável pelo espaço, que topou na hora: “OOoi piazão. Fica a vontade, piá, pode por suas coisa naquele quarto ali, depois fecha as porta com o madeirite e aquelas tábua de madeira que entra cachorro à noite” (os paranaenses dizem piá pra todo moço ou rapazinho. Pras mocinhas em quem o piá tem algum interesse, chamam de guria). Demos uma boa varrida no chão de um quarto, deixamos nossas bicicletas e bagagens lá, e atravessamos a estrada pra comer no restaurante do posto de gasolina e entrar na fila do banho junto com os caminhoneiros.

Na manhã do dia seguinte um imprevisto: o pneu traseiro da minha bicicleta acordou murcho. Trocamos a camara e deixamos a furada pra remendar depois, correndo assim o risco de não ter uma camara reserva caso outra furasse no caminho. Fomos em direção a Nova Laranjeiras. Depois da parada pro almoço, um novo imprevisto: dessa vez, o pneu do Fatício estava murcho. Ele remendou alí na hora, retirou com uma pinça o meliante incrustrado no pneu (um fiapo de arame de pneu de caminhão, a mesma causa do meu furo). Nessa parada pra almoço e remendo, já começamos a ver com alguma frequência placas de carros argentinos e chilenos, até conversamos com um senhor chileno de uns 50 anos que já teve sua fase aventureiro de moto até alguns anos atrás.  Retomamos o pedal só depois das 15:00, o que nos obrigou a pedalar com mais velocidade pra tentar chegar em Nova Laranjeiras antes das 18:00.

Os piazinhos curiosos com o conserto do pneu furado da bicicleta do Fatício, depois de nosso almoço a caminho de Nova Laranjeiras

Depois de uma pedalada forte, chegamos em Nova Laranjeiras a tempo, mas tivemos que esperar até mais de 20:00 até que alguém aparecesse no ginásio de esportes. Passamos na prefeitura, num outro ginásio, na escola municipal (conversei com o diretor), todos falavam do ginásio de esportes como o local pra ficarmos mas ninguém sabia dizer quando nem se abriria com certeza. A dica mais incisiva veio de uma moça, ou eu diria, uma guria, que atendia sozinha no balcão de uma lanchonete em frente ao ginásio. Tá certo, eu até ouvi dela que às 20:00 vinha um grupo pra aula de caratê, mas minha atenção tava mesmo vidrada nas suas…opções de comida. Tomei coragem e perguntei se eu podia comer uma de suas…paçocas. 15 centavos o torrão. Um pouco secas mas ainda assim muito gostosas essas paçocas do interior! Deu 20:00 Mais uma vez conseguimos hospedagem através do Secretário de Esportes (o Hamilton, muito gentil), mas dessa vez não no ginásio: não sei como, nem quem financiou, mas ele veio com a chave de um quarto do único hotel da cidade, onde poderíamos passar a noite. Agradecemos muito, dormimos numa cama fofinha e partimos em direção a Ibema, a última pequena cidade antes de Cascavel, a quinta maior cidade paranaense.

Em Ibema, fomos direto pra prefeitura, onde tomamos nosso primeiro chimarrão (disposto “publicamente” em cima de um balcão de atendimento da prefeitura, com a garrafa térmica ao lado). Nos apresentaram a um senhor que nos encaminhou ao assistente social da cidade. Fomos todos até uma casa abandonada, com alguns brinquedos infantis jogados no chão. A casa onde passaríamos a noite era uma antigo orfanato, hoje transferido pra outro terreno, e tinha vários quartos, chuveiro quente e pulgas, mas tava ótimo. O Fatício passou a tarde e parte da noite tentando resolver alguns problemas meio graves que surgiram na sua bicicleta: o pneu que compramos, da melhor qualidade, estava com umas bolhas nas laterais e certamente condenado, deveria durar 8000 km e não durou muito mais que 1000 km; ao desmontar a corrente pra limpar e recolocá-la, uma das peças do câmbio que deveria rodar não rodava mais, e isso impediria ele de pedalar. E na minha, o pneu traseiro estava rodando com dificuldades, travava no freio, o que me obrigou a afrouxar um pouco o freio. O Fatício passou horas mexendo na bike, e na manhã seguinte, não nas melhores condições, partimos pra Cascavel esperando encontrar lá uma boa bicicletaria que resolvesse tantos problemas surgidos tão bruscamente.

Fatício mexendo nas bicicletas em Ibema-PR

Jantar em Ibema: macarrão temperado e arroz no pote plástico doado por uma senhora, e completamos com atum em lata

A casa onde passamos a noite em Ibema

Já a poucos quilometros de Cascavel, um ciclista com quem cruzamos no sentido contrário nos alcançou após uma meia hora de nosso primeiro encontro, pouco antes de pararmos pra tomar um suco de milho na beira da estrada. Ele se chamava Roberto e ficou admirado com o que estávamos fazendo, disse que sonha viajar de bike, quis saber alguns detalhes, tirar fotos conosco. Voltaríamos a encontrá-lo já em Cascavel, onde ele pegou nossos contatos, ofereceu sua casa para ficarmos (mas já tínhamos um novo contato do couchsurfing acertado), e nos indicou uma boa bicicletaria pra vermos com calma todos os problemas surgidos nas duas bicicletas nos últimos dias. Os mecânicos eram ótimos, cobraram baratíssimo e deixaram as bicicletas zeradas. Saímos da loja pra casa do Túlio, contato do couchsurfing que nos hospedaria por duas noites, e onde iríamos encontrar também nossa primeira visita extraordinária durante a viagem: a Juli, namorada do Fatício, que aproveitou o feriado de Carnaval pra sair de São Paulo e nos acompanhar de Cascavel até Foz do Iguaçú.

Já estamos em Foz, mas deixarei o relato dos últimos 3 dias pro Fatício.

CONSIDERAÇÕES

Com exceção de Prudentópolis, todas as cidades seguintes por onde passamos tiveram poucos atrativos (fora a paçoquinha memorável de Nova Laranjeiras, e uma menina da barraca de pastel em Ibema: pedi um de “*eijo” pra ver o que vinha…Também um pouco seco, mas bem recheado). É claro que nunca se sabe quando alguém interessante vai conversar contigo, ou o que pode te cativar mesmo nos lugares menos suspeitos, e muitas coisas interessantes aconteceram sim durante esses últimos dias, como em todos os outros dias. Acontece que nessa semana minha atenção ficou mais focada nas pedaladas mesmo, em tentar desenvolver técnicas pra render melhor na marcha pesada durante subidas, na escuta de música como motor, no uso de acessórios como os óculos, a sapatilha, as luvas, a calça elástica apertadinha que acaba com nossa moral.

A calça apertadinha de ciclista, e as sapatilhas

Vou deixar pra escrever com mais calma sobre esses acessórios e quem sabe também sobre algumas técnicas para pedalar que tenho aprendido numa próxima postagem. Estamos realmente muito bem por aqui, e espero que quem está nos lendo também esteja bem, e curtindo nos acompanhar. Um grande beijo a todos.

 

Só fotos (do Affonso) – São Paulo e Paraná (de 22/1 a 14/2)

Arrumação das malas na véspera da partida, na sala da minha mãe em São Paulo.

Preparando um ovo cozido no apartamento do Fatício pra ver se o fogareiro tava funcionando.

Montando a barraca pela primeira vez, também no apartamento do Fatício e Juli (e Paco, o gato preto do rabo torto)

Minha mãe junto ã bicicleta carregada, na noite anterior à partida, quando demos uma volta-teste pelo Minhocão em São Paulo

Momentos antes de nossa partida, no portão da Escola Técnica Federal de SP. Nossas famílias e amigos na despedida.

PRIMEIRO DIA DE VIAGEM – 22/1/2012

Uma das já várias cobras mortas (e uma viva) que cruzamos pela estrada. Aqui, entre Embú e Cotia-SP

Chegada à noite em Ibiúna-SP, no primeiro dia de viagem

Garapa dos japas na estrada a caminho de Pilar do Sul-SP

Pedalando a caminho de São Miguel Arcanjo-SP

SÃO MIGUEL ARCANJO/SP (de 24 a 29/2/2012)

Chegada em São Miguel Arcanjo

Não comemos no X-panzé, em S.Miguel Arcanjo

Preparando almoço na casa da Ne

Fatício no quintalzão da Ne

Fábrica de chá verde

Fábrica de chá

Parada em Itararé-SP, só pra almoçar

PARANÁ

Divisa entre os estados de São Paulo e Paraná

Um dois muitos rios que cruzam as estradas do Paraná.

SENGÉS/PR

Fatício e Edes, da Secretaria de Esportes de Sengés-PR

Ginásio de esportes em Sengés-PR

Heron, grande cara, nos levando de carro pra conhecer a gruta da Barreira no seu intervalo de trabalho

GRUTA DA BARREIRA – SENGÉS/PR

Só a estrutura de uma antiga ponte pra o trem que trazia carga do Paraná pra Sorocaba-SP

Heron e Fatício estudando o mapa paranaense.

Ginásio de esportes em Sengés

Chão do vestiário masculino onde dormimos por 3 noites

CASTRO/PR

A ponte de Castro-PR, pequena cidade histórica de colonização holandesa

Mãe, estou bem, saudável, corado, usando capacete, e em Castro. Te amo, beijos

Um senhor de Castro e sua mulher, namorando na beira do rio em Castro. Ele nos chamou pra conversar, pagou um sorvete de nata pra cada um, e contou por quase uma hora coisas da vida.

PONTA GROSSA/PR

Calil, Eva e Cláudio, na nossa despedida, nos orientando como pegar a estrada de Ponta Grossa pra Prudentópolis-PR

Almoço na estrada: buffet livre por R$ 6,50 + tubaína de tutti frutti + Fatício em momento intrigante + Bob Esponja na tv ao fundo

 

Castro e Ponta Grossa/PR – 12 e 13/2/2012

Num trabalho espiritual que participei em Julho de 2011, depois dos transes muito loucos, eu comia uma banana sozinho num canto e do nada veio conversar comigo uma negra careca ossuda beiçuda, toda de branco e cheia de brinco e argola, ainda mais pra lá que pra cá. Perguntou meu nome, o que eu fazia, e afirmou que eu levava meus propósitos meio nas coxas. Eu disse que não, mas não insisti nisso que não sei o que dá discordar de oráculos. Ela me disse que Ele me amava e saiu por aí. Isso aconteceu umas duas semanas antes do Fatício me convidar pra fazer essa viagem.

Ontem comemoramos duas semanas levando a vida nas coxas! Mais magrelos que as magrelas, mas cada vez mais condicionados. Ao finito e além!

Chegar a uma cidade nova tem sido sempre um desafio para achar um restaurante bom e barato que sirva muita comida; assim como o desafio, maior, de achar um lugar para passarmos uma ou mais noites, com valor mínimo ou de graça (até hoje só pagamos uma noite num hotel, porque estive com febre) com alguma segurança pra nós e pras bicicletas e bagagens. Nosso repertório de estratégias inclui buscar a prefeitura (em particular as secretarias de esporte locais), igrejas, conventos, evangélicos, bombeiros, grupos de motoqueiros, Rotary club (nesse caso, seríamos filhos de sócios, mas esquecemos a carteirinha em casa). Se não conseguirmos nada disso, temos a barraca e podemos pensar em armá-la em casas vazias, cemitérios, estacionamentos, ou em terrenos nos limites da cidade. E, se não houver outra opção e montar a barraca nessas situações parecer nos oferecer algum risco, aí podemos pensar, talvez, quem sabe, com dor, pagar um hotel ou camping. Mesmo assim trazemos uma carteirinha de alberguista.

Mas se relembrarmos todas as pessoas ou lugares que até agora nos hospedaram, uma parte foram contatos (o que tende a diminuir muito quanto mais nos afastarmos de São Paulo e de nossos conhecidos), outra parte foram pessoas dos locais recém-chegados que se esforçaram pra nos abrigar de alguma forma, duas noites foram conseguidas em secretarias municipais de esporte e cultura (uma indiretamente, através do contato da Lurdes em Capão Bonito, outra diretamente com o secretário de Itapeva). Apenas ontem acessamos o couchsurfing.org , uma opção que consideramos muitíssimo, e que logo explicarei melhor.

Neste último sábado dormiríamos em Castro, cidade histórica de colonização holandesa. Logo ao chegar na cidade, buscando o centro pra achar algum movimento mas sem chances de encontrar prefeitura ou muito comércio aberto, um senhor veio nos perguntar de onde vínhamos. A conversa nem precisou durar tanto até que esse senhor, o Valdir, após uma ligação pro filho, já estivesse nos conduzindo para um estacionamento nos fundos de um boteco onde poderíamos montar a barraca e passar a noite.

S. Valdir, de Castro-PR

S. Valdir nos conduzindo até o estacionamento onde montaríamos a barraca pra passar a noite em Castro

No dia seguinte acordamos tarde, desmontamos a barraca, preparamos as bicicletas e partimos por volta das 13:00 em direção a Ponta Grossa (seriam só 40 km de estrada), a maior cidade por onde passamos desde a saída de São Paulo. Chegamos umas 16:00 do domingo com a perspectiva de que seria bastante difícil achar um lugar pra passar a noite.

Mas ontem a sorte definitivamente esteve do nosso lado. O fim de semana das cidades pequenas efetivamente é usado pra parar, é difícil achar comércio aberto, não há prefeituras funcionando, e menos pessoas nas ruas. Mesmo em Ponta Grossa, que é uma capital regional, um grande centro urbano paranaente, tivemos dificuldade pra achar um restaurante aberto na tarde de domingo.

Achamos um prato feito aberto e durante o almoço, ataquei o prato e o Fatício demorou uns 15 minutos pra começar a comer, ficava só fuçando a internet no celular dele. Como ele faz isso com bastante frequencia, pra acessar mapas, enviar mensagens, continuei comendo. No meio do almoço ele comentou que haviam 13 pessoas cadastradas no couchsurfing em Ponta Grossa, e que estava enviando solicitações de hospedagem. Ao fim do almoço, menos de meia hora após a solicitação, já tínhamos uma resposta positiva de alguém que morava a poucos quarteirões de onde almoçamos. Claro que comemoramos barcelonicamente, espartanamente.

O couchsurfing.org (couchsurfing, traduzido do inglês, significa literalmente “surf de sofá”) é um site que hospeda e agencia o perfil de pessoas cadastradas no site e interessadas em hospedar viajantes ou serem hospedadas gratuitamente por pessoas de outros lugares do mundo também cadastradas. Há formas de conferir credibilidade aos usuários, por meio de testemunhos de quem viajou ou recebeu viajantes sobre os usuários com quem se relacionaram. O Fatício já hospedou muita gente e já foi acolhido diversas vezes desde 2007, quando abriu seu cadastro no site. É quase um membro honorário. Eu não, nunca pude hospedar ninguém (apesar da vontade) e tive minha primeira acolhida (graças ao Fabrício) apenas ontem, pela Eva e o Cláudio, recém-cadastrados e cujos primeiros hospedados em sua casa fomos nós. E que maravilha tem sido! Estou escrevendo da casa deles agora mesmo, e combinamos desde o início que passaríamos duas noites e seguiríamos viagem.

Pitucho, o gato japonês, com sua refeição matinal: um pardal morto-matado. E laser nos olhos.

A Eva e o Cláudio se conheceram no Japão, onde moraram durante muitos anos, voltando para o Brasil no ano passado junto com o piá da Eva (seu filho Calil) e o gato Pitucho. Nenhum dos dois é natural de Ponta Grossa (ela é MT, ele é SP). Nos fizeram sentir extremamente à vontade na casa deles (que é também seu espaço de trabalho, com e-commerce), preparando refeições gostosíssimas (anoto aqui as anchovas pra lembrarmos no futuro), e conversando muito sobre Japão, economia, internet, tecnologia, gatos, um pouco de bicicleta, sempre com conhecimento e senso crítico. Sinto que preciso renovar a lingua portuguesa pra dar conta de agradecer algumas dessas pessoas que tem nos ajudado no caminho, os superlativos não bastam e são meio baba-ovo demais. Fora a identificação que temos tido com algumas dessas pessoas (tem sido o caso com o Cláudio e a Eva) que nos deixam saudosos antes mesmo de partirmos.

Fatício e Cláudio em Ponta Grossa-PR

Amanhã acordaremos as 5:50, tentaremos sair as 7:00 em direção a Prudentópolis, a quase 100 km de Ponta Grossa.

 

 

Mais ou menos sobre os silêncios e o pensamento na estrada

Todo ciclista de alguma forma já está acostumado a conviver com os próprios pensamentos. E vejo como lidar com os próprios pensamentos é e sempre foi uma questão complicada pra muita gente, até um tabu pra muitos grupos (ou qualquer pessoa que veja sua individualidade ameaçada ou castrada por tradições, contratos sociais ou de trabalho, idéias fixas). Minha tia Miriam do Rio de Janeiro, alguns meses antes de eu partir, me ligou aflita quando soube da viagem: “Meu filho, olha, você leu muitos livros, fez universidade, é artista, tem todo um universo interior. Eu sou uma mulher prática! Nem sei o que significa subjetividade. Eu conheço as coisas como elas são, não pela teoria. Converso com as pessoas, já vi muita coisa por aí. O mundo é perigoso, toma cuidado!”.

Bom, eu não diria que em quase 30 anos de vida não tive ainda nenhuma experiência prática (até já plantei feijãozinho no algodão, foi mágico!). Mas uma viagem de bicicleta como a que estamos fazendo é uma experiência intensíssima nos dois sentidos: na tal da vida prática, exterior, e na também tal da vida interior. Passam-se horas em silêncio, durante as pedaladas na estrada, e também depois. O próprio entendimento entre eu e o Fabrício, uma necessidade constante de equilíbrio mútuo, talvez aconteça mais durante os silêncios do que nas conversas. Uma viagem de biclicleta em grupo não garante altas conversas; quem vê o silêncio como algo incômodo, a ser evitado a todo custo, como sintoma daquele vazio que muitos querem longe, poderia ter aí um grande problema. E carregar na cabeça alguma questão pessoal mal resolvida, como uma frustração qualquer, um arrependimento, uma memória persistente, pode ver essa questão pesar mais e mais ao longo da viagem.

Durante os 6 meses que antecederam nossa partida, tentei ter clareza de que deveria sair de São Paulo sem nenhum vínculo que não fosse o estritamente afetivo, com minha família e amigos (essa foi uma resolução pessoal minha, não é uma exigência pra qualquer um que queira viajar um bom tempo de bike). Nenhum contrato, nenhuma questão pendente, nenhum rolo amoroso mal resolvido, quite com a vida e totalmente aberto para o que poderia vir a acontecer. E já na viagem, a impressão que tenho é que a cada dia devemos dormir quites, zerados com as questões do dia que está acabando. Não há nada mais urgente aqui do que o próprio momento em que se está, e as condições desse momento.

Pedalaremos uma média de 5 a 6 horas por dia, de 4 a 5 dias por semana, durante nossa viagem. Estamos descobrindo aos poucos uma certa dinâmica do corpo na estrada: na primeira hora em geral rendemos bem, e isso pode se estender pra segunda hora; da terceira em diante, dependendo da intensidade da pedalada já feita, o cansaço já aparece, e falta ainda algum tempo pro almoço (que de fato renova as energias, o ânimo e as pernas pra chegarmos ao destino do dia). Confesso que minha cabeça pensa num volume alto quase o tempo todo, e imagino que o Fatício, cabeçudo como é, também. Se nos momentos de cansaço na estrada somos assediados por pensamentos que nos puxam pra baixo, tem ficado claro como o rendimento da pedalada diminui, como também a atenção à estrada que deve ser constante. Nessa hora, ou convém ouvir uma música (se a estrada tiver um acostamento generoso e tráfego tranquilo), ou parar, ou comer paçoca, mascar algo que dure na boca, ou contar com o acaso que tem nos brindado com encontros quase sempre oportunos: gente que pára o carro pra conversar conosco, uma buzinadinhas camaradas que as vezes nos reconectam, um rio que cruza a estrada e paramos pra nadar, beber água de fontes, tirar foto, ou dar atenção pra um gavião pagando de gatão no meio da pista.

Parada nossa e do caminhão da empresa que faz asfalto no Rio Verde

Os dois cavaleiros que foram de cavalo do Paraná até o Santuário de Aparecida do Norte, e pararam pra conversar conosco na estrada e dar força

Tenho me lembrado bastante de uma frase do Deleuze (filósofo francês da segunda metade do século XX): ˜É preciso pensar com o que fortalece o pensamento, não com o que o debilita˜. Nem sempre isso é possível, mas fica como norte pra prática do pensamento, que vai ser tão constante e intenso pra nós quanto pedalar.

Pra evitar esboçar em mim um novo guru de auto-ajuda, queria começar o relato objetivo dos últimos dias de viagem, mas o Fatício já fez isso (falou de Sengés), então hoje só fiz filosofar mesmo. Só não queria deixar de agradecer ao povo de Sengés que conhecemos, e por quem guardarei muito carinho. E as moças de Piraí do Sul, que na conversa fizeram nossa digestão de feijoada ficar mais leve, beeeijo procêis.

Affonso

 

 

Sengés

Acho que já dava saber de antemão que teríamos muitas situações definidas por contingências. Ou seja, não dá pra prever tudo, mas todos os dias precisamos beber água, comer, dormir etc. Sempre que der, precisamos tomar banho, acessar internet, dormir confortavelmente. Sempre que houver a oportunidade, vamos nadar em alguma cachoeira, conhecer alguém interessante, aprender um pouco mais de bicicletas e sobre um Brasil distante do nosso cotidiano.

Antes de sair em viagem, eu nunca tinha ouvido falar em Sengés, cidade do noroeste do Paraná, vizinha de Itararé, esta última no estado de São Paulo. Não soube da cidade nem em 2010, quando ela passou por uma imensa inundação que matou quatro pessoas e colocou debaixo d’água praticamente todo o seu centro. Nunca ouvi sobre suas cachoeiras e suas paisagens naturais. E talvez não descobriria tudo isso se não fossem a viagem e algumas pessoas que conhecemos lá.

Em Itararé, onde almoçamos, havia fotos das cachoeiras de Sengés num restaurante. Chegamos à cidade com Sol a pino. 38.9 graus era a temperatura que marcava no GPS. Fomos à biblioteca, onde é feita a gestão de cultura (pelo que entendemos, a cidade não conta com secretário de esportes, e essa secretaria é então cuidada pela de cultura). Lá, a moça nos encaminhou para o ginásio da cidade, onde o Edes, que administra o espaço, nos recebeu e nos alojou num lugar ao lado do banheiro e da área pra tomar banho dos vestiários. Tínhamos o cadeado e podíamos deixar nossas coisas, o que tornava possível passear pela cidade. Tínhamos banho e onde dormir. Apesar do cheiro de urina, era mais do que o suficiente.

Já no primeiro dia, conhecemos a cachoeira do navio. As fotos falam por si.

Primeira cachoeira, embaixo da ponte.

À noite, fomos ao trailer do Dalmar, cujo filho, Adams, é um ciclista que gosta muito de mountain biking. Não só recebemos lanches de graça (nesta e nas duas noites seguintes), como fomos convidados a fazer uma trilha pra cahoeira mais famosa da cidade: véu de noiva. No dia seguinte, Affonso estava com a perna um pouco dolorida e resolveu ficar. Eu segui de bicicleta com Adams, Heron e Bruninho, para uma trilha de 27km até o canion mais alto da cidade e mais 5km até a cachoeira (passando por outra, menor, no caminho). Novamente, as fotos falam por si.

Bruxa de blair feelings

Soja em cima do canion

A cachoeira menor

Canion

Véu da Noiva, visto de frente

Tomando ar

Preparando o salto

Começando a viagem

A disponibilidade desses dois caras, Adams e Heron, fez com que ficássemos um total de três noites em Sengés. E tínhamos trilhas e cachoeiras pra ficar pelo menos mais uma semana. O que mais me impressionava era a empolgação de ambos em revelar o que só eles sabiam. Visitamos algumas áreas que nem os pais dos rapazes conheciam. E tudo isso pelo puro prazer de compartilhar conosco o que sabem e participarem um pouco da nossa viagem. Minha gratidão pelo que fizeram é infinita.

Os muleque de Sengés

E foi com o Heron que conversei mais sobre as questões políticas da cidade. Embora seja um pequeno paraíso, a prefeitura de Sengés não sabe explorar  e conservar as paisagens da região. A cidade é atravessada por caminhões de transportadoras, sobretudo por caminhões da Sengés Papel e Celulose, empresa que joga diuturnamente uma fumaça branca no ar da cidade, que dizem ser de enxofre. Ao lado do centro, é muito claro e óbvio que o impacto ambiental é brutal, sobretudo para os moradores. Há relatos de que Sengés tem 10 vezes mais incidência de câncer na cabeça entre seus habitantes. Ouvi também que a empresa é dona a área onde se concentra boa parte da mata ciliar das cachoeiras e rios da região e, embora tenha havido um caso recente de inundação, ela segue derrubando a mata nativa para plantar pinho. É um caso seríssimo de saúde pública e um exemplo preciso do que acontecerá quando nosso tão desrespeitado código florestal for flexibilizado. Contradição tão clara: uma cidade tão preciosa por seu bens ambientais e tão atacada 24h por dia por quem domina o poder econômico (com braços políticos e no judiciário).

Vista de Sengés da estrada.

15 km de Sengés

Se existe algo como a cetesb (ou ministério público mesmo servia) no Paraná, ela certamente faz vista grossa pra essa aberração. E a vista é bem grossa mesmo, porque a fumaça é visível a 15 km de distância, como nós pudemos fotografar.

São Miguel Arcanjo, Capão Bonito e Itapeva

 DOENÇAS – Há alguns anos, numa época em que minha cabeça criava trocadilhos e brincava de pensar paradoxos quase todo dia, lembro que o Giovanni (amigo da época do curso de artes plásticas) veio com essa: “Li na internet que existe uma doença relacionada a quem cria mais de 3 ou 4 trocadilhos por dia”. Beleza, então eu era doente, tava sabendo desde aquele momento, e fiquei até feliz em saber da doença.

Tô contando isso pra introduzir um desses paradoxos que desenterrei da memória durante os dias em São Miguel Arcanjo, onde acabamos ficando  5 dias por conta de vários problemas de saúde que tive e fizeram a gente parar. Se eu penso: “A sorte tem muito azar” e na sequência: “O azar tem muita sorte”, ao fim me dá a impressão que o azar leva uma pequena vantagem. Mas isso é só um jogo de linguagem.

O fato é que ficaríamos só uma noite em São Miguel, na casa da Ne, mãe de uma ex-colega de trabalho. Na manhã seguinte à nossa chegada, ao acordar e pensando já em sair, uma dor entre a cintura e a coxa da minha perna direita que já existia desde Pilar do Sul mas não chegou a comprometer nada, se impôs e me fez mancar o dia todo. Adiamos então nossa partida. Fui ao posto médico e me disseram que estava com tendinite, uma inflamação do tendão. Recomendaram uma semana de repouso, injeção no bumbum e uns remédios anti-inflamatórios (não tomo remédios há anos, mas tomei).

Ficamos mais uma noite na Ne, e já no dia seguinte, além da dor da tendinite, acordei com o pulmão arranhando por causa de uma crise de asma súbita, e dez minutos sob o sol causaram uma reação alérgica horrorosa na pele do corpo todo que só está começando a melhorar agora, após quase uma semana do primeiro diagnóstico. Tanto a asma quanto a reação alérgica ao sol foram reações colaterais ao remédio anti-inflamatório. Até uma médica, a quarta que consultei durante essa saga da tendinite (na verdade, foi uma bursite) me disse: “Menino, que azar..”

O último episódio das doenças (espero eu) foi o da minha bicicleta; afinal, numa viagem como a nossa, o ciclista e a bicicleta são uma coisa só, e não duvido que os problemas com a minha corrente, além de terem me obrigado a gastar muito mais energia nas pedaladas do que eu deveria, foram parte da causa da minha bursite. No terceiro dia em São Miguel, levei a bicicleta pro Magrão, um mecânico local, dar uma avaliada. Ele resolveu a questão: a corrente que eu estava usando era pra um câmbio de 21 marchas, e eu estou usando 27 marchas. Isso explicava muita coisa, e o que mais me intrigava foi como que esse detalhe crucial passou despercebido por mim e pelo Fabrício na hora da compra da corrente, pelo mecânico que montou minha bicicleta em São Paulo (desatenção ou negligência), e também pelo Airton (o mecânico paraplégico de Pilar do Sul).  Comprei uma corrente nova e pela primeira vez senti como pedalar naquela bicicleta deveria ser desde o início; a diferença na pedalada, na troca das marchas, no esforço, eram brutais. Se nos primeiros dias de viagem cheguei a pensar (até escrevi aqui no post) que algum sofrimento faz parte da viagem, hoje eu diria de outra forma: há sim muito esforço, mas se há sofrimento há algum problema. Mesmo as inúmeras subidas, que nos primeiros dias me faziam pensar no Sísifo o tempo todo (Sísifo é aquela figura mitológica condenada a carregar uma pedra montanha acima pela eternidade), hoje, com a bicicleta redondinha, e mesmo com quase 30 quilos de bagagem, são só uma questão de paciência e perseverança.

HÉLIO E VANDA de SÃO MIGUEL ARCANJO – Logo ao chegarmos em São Miguel, antes mesmo de chegarmos na casa da Ne, fomos abordados na rua por um ciclista muito simpático e todo equipado: “Opa, cicloturistas! Vindos de onde?”. Era o Hélio, que trabalha numa loja de conveniências/padaria em São Miguel com a mulher Vanda, e organiza viagens de bicicleta com um pequeno grupo de ciclistas de São Miguel. O Hélio fez questão de nos mostrar os roteiros ciclísticos que já realizaram, apresentar o grupo de mulheres ciclistas de São Miguel (7 ou 8 mulheres, incluindo a Vanda), e de nos dar todo tipo de assistência durante nossa estadia: nos levou até a casa da Ne, me levou até o posto de saúde, ofereceu café da manhã, sugeriu o mecânico pra bicicleta. Essa figuras, que aparecem do nada e tem sido até constantes na nossa viagem, não dão chances pro azar levar vantagem.

SEU BENEDITO/D. ANA/EVANDRO de S.Miguel ARCANJO – Após quatro noites dormindo na Ne, muito mais do que o previsto inicialmente, conseguimos uma nova hospedagem em São Miguel para passarmos a última noite antes de retomarmos a viagem rumo a Capão Bonito. E foi num lugar intrigante: o contato eram os pais do Éder, amigo de amigos meus da Usp. No telefone, a dona Ana e o Seu Benedito nos orientavam para que fossemos pra perto da fábrica de chá. Fomos e ficamos rodando ao redor da fábrica, até descobrirmos que ele moravam dentro mesmo do terreno da fábrica da Yamamotoyama, a mesma marca de chá verde e ban-chá que costumo tomar no dia-a-dia em São Paulo. Era domingo e a fábrica não estava funcionando; o Seu Benedito era o administrador da fábrica, bebia diariamente o chá pra avaliar se a qualidade e o sabor estavam de acordo com os padrões da marca. Foram extremamente gentis conosco, nos deram almoço, jantar, café da manhã, atenção e um quarto pra dormir.

A IMAGEM DO CICLO-VIAJANTE E DO CICLISTA – Nos dias de repouso em São Miguel pudemos reparar na enorme diferença  de abordagem das pessoas locais  em relação a nós quando estamos com a bicicleta carregada com as bagagens (alforjes, barraca, sacos de dormir, etc), e quando estamos pedalando descarregados. Como disse o Fatício, há algo de performático na figura do ciclo-viajante, e que inspira imediatamente qualquer pessoa a se perguntar (ou a nos perguntar): “Vem de onde?”, “Vão pra onde?”, “Precisam de ajuda?”, “Tão pagando promessa?”. E outras: “Ai, que dor nas perna!”, “Que coragem!”, “Soorte procêis!”. A comunicação com praticamente qualquer pessoa é imediata, não parece haver qualquer julgamento em relação à nossa condição social.  Mas se estamos pedalando sem as bagagens, paradoxalmente me sinto mais vulnerável: nos tornamos de certa forma alvo de olhares que ou censuram, ou invejam, pois de repente somos os caras com as bike boa, da hora, toda incrementada. Nas estradas os caminhoneiros dão então menos atenção a nós, e isso é sempre um grande risco. E, de modo geral, toda pergunta quanto a nossa origem ou destino cessa nas pessoas com quem cruzamos, deixamos de ser viajantes.

RETORNO À ESTRADA, RUMO A CAPÃO BONITO – Após os 5 dias parados em S. Miguel, retornamos à estrada em direção a Capão Bonito. Não sei se pela enorme vontade de voltar pra estrada, ou pelo vento da manhãzinha que é sempre bom, ou por que finalmente minha bicicleta estava rodando como deveria, todo o caminho até Capão Bonito foi uma delícia de ser percorrido, muito leve pra mim. Chegamos em Capão Bonito ao meio-dia, almoçamos na praça central, e em seguida fomos buscar uma bicicletaria pra tentar arranjar um pézinho/descanso pra bicicleta do Fatício. A dona da bicicletaria era a Lurdes, mais uma dessas figuras partidárias da nossa sorte. Enquanto o Fatício resolvia com o mecânico as questões da bicicleta dele, eu conversava com a Lurdes e a Dani (filha, que também atende na loja) sobre nossa viagem, até que perguntei sobre um lugar baratinho pra passarmos a noite. “Humm, deixa ver.. Tem aquela pensãozinha aqui atrás. Devem cobrar uns 20 reais.” Comentei que 20 era muito pra nós, que não fazíamos questão de conforto e só passaríamos aquela noite na cidade, partindo na manhã seguinte. A Dani comentou com a mãe: “Imagina mãe, se eles forem gastar 20 reais todo dia até chegar no Canadá, aí eles tão lascado”. Daí ligou um motorzinho interno na Lurdes, que pegou o telefone e ligou pro Secretário de Esportes e Cultura de Capão Bonito. Em poucos minutos de ligação, ela nos arranjou um contato com o Secretário, uma reportagem no jornal local, um quarto de hotel pra dormirmos (com café da manhã incluso), e à noite nos preparou uma janta ótima.

ITAPEVA – Acordamos 5:30 no Hotel Regina em Capão Bonito, fizemos a consagração do estômago no café da manhã bem servido do hotel, e partimos umas 6:30 rumo a Itapeva. O cenário ao longo das estradas é quase sempre o mesmo: quilômetros e mais quilômetros de plantações de eucalipto ou pinho, soja, e eventualmente milho. Os grãos, sempre transgênicos, e o eucalipto e pinho sempre pra corte. Quase não havia mata nativa nas laterais das estradas. Faltando alguns quilômetros até chegarmos em Itapeva, paramos em Itararé pra almoçarmos, e seguimos adiante. Chegando em Itapeva umas 14:00, fomos direto procurar a Secretaria de Esportes local, pra buscar apoio. Não vou negar que mais uma vez conseguimos hospedagem, mas foi osso: esperamos quase duas horas o Secretário de Esportes local chegar, mais meia hora até ele nos chamar na sala dele, fazer todo um discurso politiqueiro, sobre as glórias do time de futsal de Itapeva, e pra falarmos deles nas próximas cidades, etc. Acabamos sabendo que poderíamos dormir numa casa cedida ao time de futsal da cidade, mas para isso tivemos que esperar mais quase uma hora até o secretário liberar o Luís (técnico do time de futsal) da sala dele pra que nos mostrasse o caminho até a casa. Chegando lá, uma casa mais ou menos sucateada, inteira cheirando a mijo, um banheiro que não era limpo há muito tempo, mas que ainda assim serviria pra passarmos a noite.

Mais informações, aguarde o próximo versículo…

Airton

Em Pilar do Sul, cidade que já deixamos pra trás, enquanto o Affonso estava acamado, fui tentar resolver o problema da corrente da bike dele. Coisa bem estranha, uma corrente nova que estava bastante travada e não girava em alguns elos.

Nessa busca aleatória de bicicletarias, fui parar na casa do Airton. O rapaz trabalha num quintal (tem até uma churrasqueira), com um monte de bicicletas encostadas umas nas outras. Lá no fundo, é possível ver um pequeno pomar, e, antes dele, um imenso latão onde ele empilha peças velhas de bicicleta.

Airton trabalhou pelo menos uma hora na corrente do Affonso. Lubrificou com óleo singer (que eu sei que é inapropriado, mas era o que tinha), alargou os elos travados, desmontou os pneus pra mim e eu coloquei as fitas anti-furo. Ele montou tudo de volta. Ao final deixou claro: “não tá 100%, mas eu não tenho uma corrente nova aqui, então é o melhor que eu podia fazer”.

Enquanto estávamos juntos, Airton recebeu cerca de 12 clientes. Quase todos moleques, aos quais respondeu igualmente: “as peças não chegaram ainda, distribuidor vem mais tarde, passa amanhã faz favor”. O interior tem essa coisa de uma outra velocidade.

Até aqui, nada de novo no descritivo. Mas o que é curioso dessa experiência foi ver toda uma oficina de bicicletas adaptada a um mecânico com deficiência física. Se não me falhe a memória do que Airton me contou, ele sofreu um acidente de carro aos 19 anos e perdeu o movimento das pernas. Ficou três anos sem fazer nada e aos poucos começou a achar coisas de que gostava de fazer.

Contou que fazia pipas, papagaios, carrinhos de rolemã pra molecada e foi nesse momento em que ele começou a arrumar algumas bicicletas. Pouco a pouco, a molecada começou a trazer mais bikes e ele sacou que dava pra ganhar alguma grana com aquela ocupação. Há seis anos, ele é mecânico de bikes.

Enquanto falava da sua história, Airton foi especialmente enfático no episódio da compra mínima. Pra passar a ter uma bicicletaria, é necessário ter estoque. A primeira compra para estoque tinha que ser de mais de 360 reais e ele comentou do apuro que passou porque não sabia se faria suficientes trabalhos pra pagar a soma. Ao fim, ele conseguiu pagar a primeira compra e desde então vem mantendo essa oficina que é bastante conhecida em Pilar do Sul.

Eu não queria fazer juízos sobre essa história nem tirar conclusões. Queria só ressaltar uma cronologia: uma pessoa que perde o movimento das pernas por conta de um acidente de carro e passa a arrumar bicicletas, que ele próprio nunca poderá usar.